segunda-feira, 15 de janeiro de 2018





UMA NOITE SINISTRA

Conto publicado no livro “À noite, todos os gatos” em 1998.

(Parte 3) 

Parece uma profecia: chutei a parede.
Não exatamente a parede, mas o primeiro degrau da escada.
É lógico que foi sem querer, embora não tão lógico, mas na minha letargia, andando de um lado para o outro e olhando para cima como se invocando o Altíssimo e todos os santos de menor escalão, alguns anjos e até deuses mitológicos e entidades de luz, não reparei o degrau que se debruçava impunemente como um molhe atrevido para o meio da sala.
Não só chutei a peça de granito e cimento com força e sem chinelos como fui lançado como se por uma catapulta para o primeiro lance da escada, os óculos se me escapulindo da cara e se projetando sobre o vaso com um arranjo de artemijas e a barriga embicando contra a quina do quarto ângulo, a testa no sexto.
Saio rastejando como um ápode, sofregamente no encalço dos óculos cujas lentes já se encontram tão opacas que francamente não faz a menor diferença tê-los ou não tê-los. Depois, inspeciono como medida de rotina as condições do carpo e do metacarpo e de uma falange esfolada que doem tão intensamente que, como eu suspeitava, não me incomodam em absoluto mais do que as outras minhas chagas.  
Acho que estou entrando em um plano astral só conhecido pelos faquires e outros autoimoladores orientais, este sim é o verdadeiro nirvana. Se eu sobreviver a esta experiência autofágica vou pregar a Verdade em praça pública, vou elaborar um tratado sobre o efeito da goiabada cascão sobre a salvação eterna, a mais doce forma de purificação, doce de leite, rapadura e cocada também servem, o importante é sofrer, ser alçado às galáxias e depois sentir a cara repousando sobre um degrau plano, duro e acarpetado enquanto o sono chega em forma de desmaio, o telefone tocando novamente com furor – ou será uma brincadeira pregada pela mente em delírio? – as drogas medicamentosas ingeridas entorpecendo e embotando o raciocínio e os movimentos, e eu me sentindo como se flutuasse. Agora não há frio nem calor, a dor se transformou numa dormência cálida, em um bilhão de partículas que vibram e vão se assenhoreando de todo o meu corpo, do dente ao pé.
Somente a haste dos óculos me incomoda um pouco, pressionando como um torniquete a área compreendida entre a orelha e a fronte.

-0-

Às oito da manhã, pontualmente como sempre, chega dona Ernestina para cumprir com esmerado zelo sua missão de diarista do tipo lava, passa, arruma e cozinha.
Ela cumprimenta a vizinha que varre para o meio-fio as folhas que o outono arrancou durante a noite, abre o pequeno portão, passa por ele e depois o fecha, então caminha pelo piso de lajotas vermelhas que cruza com o também pequeno jardim que está – e ela olha com desaprovação – precisando de uns cuidados.
Abre a bolsa do tamanho de uma sacola, apanha a chave, enfia a chave na fechadura e gira duas vezes para a esquerda, abre a porta e “oohhh!!!” entra em pânico ao ver um corpo de homem caído nos primeiros degraus da escadaria revestida de carpete no topo de cada degrau.
Quer gritar, chamar a vizinha, os bombeiros, a ambulância e a polícia, mas a voz não sai, as pernas tremem e ela não consegue sair do lugar.
É claro que o corpo esparramado na escada sou eu, dormindo enfim com todo aspecto de um morto, bêbado não, pois bêbado que se preza não se embriaga de pijama.
A voz finalmente sai e ela afinal grita, e eu acordo mais assustado que ela.
Acordo todo moído, a luz que vem da janela frontal com as cortinas abertas incomoda os meus olhos, e por detrás do vidro a cara curiosa da vizinha me incomoda muito mais.  
O que importa é que eu estou vivo e surpreendentemente sem dores, apesar de me sentir saído de um liquidificador.
Abro um olho, depois outro, recomponho os óculos e vejo através das lentes sujas a expressão boquiaberta de dona Ernestina e a cara da vizinha impressa na janela e a bolsa que parece uma sacola caída no chão, por onde se espalham as artemijas que foram cuspidas do vaso.
Na falta de algo melhor para dizer que fosse decentemente apropriado e que tivesse o mínimo sentido para explicar a cena dantesca, balbuciei – “eu ia ao dentista, dona Ernestina, mas mudei de ideia e acabei ficando por aqui mesmo” – acreditando que o tom da explicação pudesse quebrar o encanto do inverossímil da cena.
Ato contínuo, levanto-me altivamente como um general que caiu do cavalo e subo com grandiosidade a escada em direção ao quarto para tentar direcionar a minha cabeça e pensar no que fazer da vida.
Na testa, uma marca levemente vermelha.
Dona Ernestina, em pé no umbral da sala, me acompanha com os olhos e com a boca aberta, o coração voltando à normalidade.         

    

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