quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018





EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE EM ÉPOCA DE PROVAS

(Conto publicado em 1988 no livro “Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em 1967)

(Parte 1)

Mais uma vez nesta mesma estação.
Não me lembro mais quantas, se duas, se dez, se mil, mas estou sempre chegando e raras vezes partindo, é assim que me parece, é assim que me sinto.
É que chego acordado, sofrendo o que está havendo e o que está por vir, e parto sonhando, não raro dormindo.
Estação de águas, estação de trem, estação do ano, mais uma vez estou aqui.
Minha chegada se cerca de irreverência, se cerca de reverência, as marquises se inclinam para me dar as boas-vindas – ou simplesmente para me olhar mais de perto, um objeto estranho, uma pessoa estranha, já deviam ter se acostumado comigo.
Da minha parte, eu a conheço bem. Nem estação de águas é mais, nem quando chove, faltam água e turistas naquele hotel-pensão, uma estação sem outra atração além da praça inaugurada pelo imperador no tempo do imperador, isso é o que diz a placa no monumento com a sua muda voz de bronze.
O chiado dos trens lembra o barulho de ferros retorcidos, mas o deste aqui parece agonia de asmático. Depois suspira, depois suspiro, carrego a mala e vou abrindo caminho com os joelhos nos outros, a porta é sempre estreita e os degraus perigosos, as bolinas se sucedem, intencionais ou sem intenção, enquanto olhares agressivos e inocentes se intercalam assim como os vazios e os dormentes da linha férrea.
O vendedor de jornais vende jornais, e nem poderia vender outra coisa, ou poderia, se quisesse, quem sabe quer e não pode, por isso tem essa cara de esquife, ou será que são os reflexos das más notícias do dia?
Alguns níqueis bastariam, agora que reinventaram os níqueis, para que o homem dos jornais sorrisse de um jeito agradecido, seriam os níqueis para o pão, havendo o pão.
Outra bomba na Ásia, é sempre na Ásia ou nas redondezas, talvez por ser maior o espaço e maior o número de vítimas, de Hiroshima a Haiphong, de Seul a Quang Binh, os amarelos de olhos riscados nascendo como cogumelos e morrendo como cogumelos, têm os olhos estreitos por causa do clarão intermitente dos cogumelos atômicos, é matar dez e aparecem vinte, numa progressão geométrica e geográfica, geológica, ilógica e ideológica.
O ministro falou que...  – mas o que interessa o que o ministro falou, se é só o que ele sempre faz? Falou, mas não se importa com a fome nem com a verdade, nem com a crise. O chefe da polícia e o ministro do trabalho pedem para que não se façam greves ou passeatas ao meio dia para não estragar a hora do almoço, às cinco da tarde sim, que é hora de apanhar e de interromper o trânsito. E que os jornaleiros continuem mantendo a sua cara de esquife como se além do jornal estivessem vendendo o próprio filho, o que afinal não deixa de ser também uma forma de protestar.
A plataforma da estação se estende por muitos metros para finalizar numa rampa ao lado de um leito ferroviário coberto por pedregulhos manchados por óleo. Chaves se movimentam, preguiçosas. Ainda existe algum vestígio do vapor da velha máquina, embora os trens do império tenham sido trocados por locomotivas americanas há um certo tempo, financiadas pela Baltimore Ohio & Co.
O portão de ferro está aberto, apontando suas grades para cima, e todos passam silenciosos como nas fronteiras, crianças por debaixo das catracas e as de colo por cima, os adultos com a barriga ou com o sexo empurrando a alavanca com um estalo, a virgindade mais uma vez rompida naquele ruído de portão quando se fecha. É o mesmo ruído do portão do cemitério e o mesmo visual de sessenta anos atrás, os ratos deslizando e os quadros de aviso sem leitores e sem avisos.
Assim também fazia Hitler, tocava o seu rebanho ao som de marchas e contramarchas, a mão estendida à guisa de continência para ver se estava chovendo, até que choveram bombas britânicas estreladas, e aí então, mesmo aquela cruz quebrada impressa sobre sangue perdeu sua austeridade, mesmo os centuriões perderam os seus escudos e as suas máscaras, as contra gases e as da arrogância, e mesmo o som da marcha perdeu o seu repique.

SEGUE


Nenhum comentário: