segunda-feira, 9 de abril de 2018







COMO NASCEM AS CANÇÕES

(Parte 4)

(Artigo escrito para a página da Academia Poética Brasileira – https//www.facebook/com/academiapoetica/. Este site é uma publicação da Academia Poética Brasileira, da qual sou membro)


A bossa nova logo se desentendeu consigo mesma graças a uma corrente que contestava o seu lado burguês. Para eles, a poesia bossanovista se fixava apenas nas belezas do Rio e deixava de lado antigas queixas sobre a qualidade de vida do carioca menos privilegiado.
Uma ala dissidente procurava buscar como fonte de inspiração o lado B da cidade – o morro, a favela e a pobreza – um movimento interessante que acabou valorizando músicos e compositores de outras vertentes, como Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho e João do Vale, agregando-os à juventude intelectual progressista que frequentava o local – Carlos Lyra, Edu Lobo, Baden Powell, Oduvaldo Vianna Filho, Ruy Guerra, Nelson Lins e Barros, Dori Caymmi, Sérgio Ricardo.
O movimento também descentralizava o foco da bossa nova e nacionalizava a visão crítica social, inserindo no contexto compositores como Chico Buarque, Capinam, Gilberto Gil e Dominguinhos.
Nara Leão, que havia se imortalizado como “a musa da bossa nova” era ao lado de Elis Regina e Maria Bethânia o principal motor incentivador da nova cena.
Um dos compositores que mais lutaram nesse sentido foi Carlos Lyra, o mesmo da sereníssima “Se É Tarde, Me Perdoa” (“Se é tarde, me perdoa / Mas eu não sabia que você sabia / Que a vida é tão boa / Se é tarde, me perdoa / Eu cheguei mentindo, eu cheguei partindo / Eu cheguei à toa /  Se é tarde, me perdoa / Trago desencantos de amores tantos pela madrugada / Se é tarde, me perdoa / Vinha só, cansado”).
Deixando a poesia de lado, Lyra saiu em defesa do lado pobre do Rio e compôs coisas como “Feio Não É Bonito” (“Feio não é bonito / O morro existe, mas pede pra se acabar / Canta, mas canta triste / Porque tristeza é só o se tem pra cantar / Chora, mas chora rindo / Porque é valente e nunca se deixa quebrar / Ama, o morro ama / O amor aflito, o amor bonito que pede outra história...”) ou “Maria Moita”, um hino ao feminismo em plenos anos 1960 (“... Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois / Por isso é que a mulher trabalha sempre pelos dois / Homem acaba de chegar tá com fome / A mulher tem que olhar pelo homem / E é deitada ou em pé, mulher tem é que trabalhar...”).
Tom Jobim e Vinícius de Moraes também entraram na onda e compuseram “O Morro Não Tem Vez” (“O morro não tem vez / O que ele fez já foi demais / Mas olhem bem vocês / Quando derem vez ao morro / Toda a cidade vai cantar”).
Além de buscar inspiração nas raízes mais sofridas do povo do Rio de Janeiro, Carlos Lyra também engrossou a onda social-nacionalista na mesma linha de José Ramos Tinhorão, Gianfrancesco Guarnieri, Chico de Assis e Geraldo Vandré ao denunciar a “invasão americana” na música brasileira.
Lyra compôs “Influência Do Jazz” (“Pobre samba meu / Foi se misturando, se modernizando / E se perdeu / E o rebolado, cadê? /Não tem mais / Cadê o tal gingado que mexe com a gente? / Coitado do meu samba, mudou de repente / Influência do jazz”), mais ou menos nos mesmos moldes de “Chiclete Com Banana”, composto por Gordurinha e Almira Castilho, gravada por Jackson do Pandeiro em 1959 também na onda do nacionalismo (”Eu só ponho bebop no meu samba / Quando Tio Sam pegar o tamborim / Quando ele pegar / No pandeiro e no zabumba / Quando ele aprender que o samba não é rumba...”).
Walter Santos, um baiano cuja voz e atitude lembravam João Gilberto, sustentou a discussão com “Samba Só” (“Bossa nova ou samba-jazz / Sambalanço ou samba só / O que importa é que o balanço é bom / Interessa é balançar / Bossa nova ou samba-jazz / Nosso samba agora está demais / Ah, meu samba, fizeram tanta confusão / Disseram que você desafinava / Ah, meu samba, quanta ingratidão”), e Leny Andrade veio de “Estamos Aí”, de Durval Ferreira e Mauricio Einhorn (“Só se for agora a bossa vai prosseguir / Todo mundo vai gostar, nosso samba é demais / Bossa nova vai mostrar que pode arrasar / Se falar de sol e amor, de mar e luar / E de gente que cantando vai / Gente que só tem na alma paz e amor / E pro mundo todo vai mostrar então / Que a bossa nova cresce / Que a bossa nova vence / Que a nossa bossa vale, estamos aí!”), e completava com um magnífico scat bem na linha do bebop.  
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Edu Lobo, que já havia composto com Vinicius a romântica “Canção Do Amanhecer” (“Ouve, fecha os olhos meu amor, é noite ainda / Que silêncio / E nós dois na tristeza de depois / A contemplar o grande céu do adeus...”),  também entrou no movimento da “nova música popular” dentro de uma abrangência maior, cantando a saga do retirante nordestino em fuga do seu destino para o sul do país, como em “Borandá” – “vamos embora” no linguajar do sertão – (“Vam’borandá, que a terra já secou / Borandá / Vam’borandá, que a chuva não chegou / Borandá / Já fiz mais de mil promessas / Rezei tanta oração / Deve ser que eu rezo baixo / Pois meu Deus não ouve não...”) ou “Chegança” (“Estamos chegando daqui e dali / E de todo lugar que se tem pra partir / Trazendo na chegança foice velha e mulher nova / E uma quadra de esperança...”).  
Foi quando Roberto Menescal e Luiz Fernando Freire responderam com uma música na tentativa de acabar com a polêmica que já começava a dividir os músicos do Rio ao mesmo tempo em que justificava coexistência do “mar-amor-luar” e da “lata d’água na cabeça”, estado de coisas que apontava um dos sérios problemas sociais do estado.
A música se chama “Vê”, foi composta em 1964, e segue assim – (“Vê, entende a gente / Que é feita de amor / E simplesmente à vida dá valor / E sem razão pra tanta reunião / Pra nós importa a voz do coração / E o nosso tema consiste de ternura / Mas só entende quem tem a alma pura / E não depende de quem não vê / Que o mundo é cor / Que o mundo é céu e mar / E que uma flor não vai alienar / Uma canção que é feita pra cantar / E a discussão não vai adiantar / Quem tanto fala devia embora andar / Na mesma praia um dia vai achar / O mesmo céu e aquele mesmo mar...”).
Marcos e Paulo Sérgio Valle também entraram na onda do desagravo da bossa nossa com “A Resposta” (“Se alguém disser que o teu samba não tem mais valor / Porque ele é feito somente de paz e amor / Não ligue não, que essa gente não sabe o que diz / Não pode entender quando um samba é feliz / O samba pode ser feito de céu e de mar / O samba bom é aquele que o povo cantar / De fome basta o que o povo na vida já tem / Pra que lhe fazer cantar isso também?... / ... Falar da terra na areia do Arpoador / Quem pelo pobre na vida não faz um favor / Falar do morro morando de frente pro mar / Não vai fazer ninguém melhorar”).
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Um pouco mais raras, mas não menos belas, são as composições que mostram o diálogo entre duas pessoas como em “Sinal Fechado”, obra prima de Paulinho da Viola lançada por ele no V Festival de MPB da TV Record em 1969 (“Olá, como vai? / Eu vou indo, e você, tudo bem? / Tudo bem! Eu vou indo correndo, buscar meu lugar no futuro, e você? / Tudo bem!  Eu vou indo em busca de um sono tranquilo... quem sabe? / Quanto tempo, pois é, quanto tempo...”), ou em “Amigo É Pra Essas Coisas”, composta por  Aldir Blanc e Silvio da Silva Junior em 1970 e imortalizada pelo MPB4 (“Salve! Como é que vai? / Amigo, há quanto tempo! / Um ano ou mais / Posso sentar-me um pouco? / Faça o favor / A vida é um dilema / Nem sempre vale a pena / A... / O que é que há? / ...Rosa acabou comigo / Meu Deus, por que? / Nem Deus sabe o motivo / Deus é bom... / Mas não foi bom pra mim / Todo amor um dia chega ao fim...”). Ou ainda a antológica “Teresa Da Praia”, de Antônio Carlos Jobim e Billy Blanco, composta em 1954 para as vozes de Dick Farney e Lucio Alves (“Lucio, arranjei novo amor no Leblon / Que corpo bonito, que pele morena / Que amor de pequena, amar é tão bom, tão bom / Oh, Dick, ela tem o nariz levantado / Os olhos verdinhos bastante puxados / Cabelos castanhos / E uma pinta do lado...”).
       

SEGUE

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