quarta-feira, 29 de agosto de 2018





ANTÔNIO VIEIRA E EU

São muitas as diferenças culturais que poderiam ter servido de barreira entre Antònio Vieira e eu: diferença de idade, diferença de lugar de nascimento, diferença de história de vida e até diferença de vivências musicais.
Pra ficar só com esta última, pelo lado de Vieira existe um profundo conhecimento das coisas do Maranhão, como suas raízes, seus ritmos populares – bumba-meu-boi, tambor de crioula, tambor de mina – a poesia do cotidiano, as intimidades de São Luís e as coisas deste nordeste, e pelo meu lado está a universalização da música – influências do erudito, do jazz, do blues – e a herança europeia inculcada no sul do país.
Estas diferenças, no entanto não foram suficientes para interferir no respeito mútuo pela arte que manifestávamos, na forma como víamos o mundo e na empatia que prontamente nasceu e assim foi cultivada.
Tornei-me amigo de Vieira e estivemos juntos no mesmo palco por diversas vezes, cada um dando vazão ao seu modo de interpretar, ao seu padrão musical e ao seu repertório.
E, por sugestão do próprio mestre, por diversas vezes dividimos a mesma canção.
Juntos, cantávamos “Smile” obra prima de Charles Chaplin, eu em inglês (“Smile though your heart is aching / smile even though it’s breaking / when there are clouds in the sky you’ll get by”) e ele retrucando em português (“Sorri quando a dor te torturar / e a saudade atormentar / os teus dias tristonhos, vazios”), na versão escrita por Djavan.
O mesmo acontecia com “Contigo En La Distancia” – bolero de Cesar Portillo de La Luz (“No hay bella melodia / en que no surjas tú / ni yo quiero escucharla / si no la escuchas tú”), ao que Vieira aparecia com a versão de Paulo Gilvan, feita para o Trio Irakitan (“Não existe melodia / em que não surjas tu / nem eu quero escutá-la / se não a escutas tu”)...    
Estivemos juntos também nas mesas de bar e nas casas dos amigos, eu com a minha cerveja e ele com o seu refrigerante, que bebia de forma parcimoniosa enquanto me brindava com seus incontáveis “causos” que dariam um delicioso livro de crônicas, incluindo algumas histórias da sua juventude e a origem de muitas das suas incontáveis composições, algumas delas impagáveis, outras impublicáveis.
Fazem falta as gargalhadas que ele provocava ao final de cada história, que muitas vezes precediam a sua entrada em cena para sob os holofotes, onde desfilaria mais uma sessão de música, ginga e encantamento.
O mestre Antônio Vieira nos deixou em abril de 2009, quando tinha 88 anos e muitos planos para outros voos dentro da música popular brasileira.
Voou para mais longe, levando sua simpatia para junto dos anjos.


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