segunda-feira, 27 de maio de 2019





POESIA & JAZZ
Augusto Pellegrini

        Edgar Allan Poe, grande escritor e poeta americano do século 19, é autor de uma citação que diz “a poesia é a criação rítmica da beleza em palavras”.
        Existe, na verdade, uma profunda alquimia entre os versos – e a prosa – de Poe com a música impressionista, o que tem possibilitado a muitos músicos a apresentação pública das ideias do escritor sob o ponto de vista musical.
        Alguns poemas de Poe se transformaram em obras musicais ou sugeriram criações musicais através de leituras e adaptações feitas por músicos como Dominick Argento (na ópera “The Voyage of Edgar Allan Poe”); a banda alemã Coppelius (no rock-metal “Murders in the Rue Morgue”); o grupo The Beatles (no pop-sinfônico “I’m The Walrous” – onde eles cantam “Man, you should have seen them kicking Edgar Allan Poe”); a banda Creature Feature (no pulp-terror-rock “Buried Alive” – com palavras como  As I walk the valley of unrest behind this mask of crimson death”); e o compositor Claude Debussy (no erudito “The House of Usher”), entre dezenas de outros, embora nenhum deles tivesse transformado Poe em jazz.
        Talvez Ornette Coleman, Sun Ra e alguns outros  tenham feito isso de forma inconsciente com o seu jazz profundamente inovador, que ia além do chamado free-jazz e continha todos os ingredientes que fugiam da normalidade do cotidiano, abrangendo a paranormalidade, o mistério e o esoterismo.
        Analisando a frase inicial de Poe mencionada neste artigo e procurando vê-la sob um ângulo musical, percebe-se muita semelhança de filosofia entre uma obra poética e uma composição jazzística. Para tanto, basta mudar o contexto para “o jazz é a criação rítmica da beleza em sons musicais”.
        A utilização das palavras – quando se acrescenta o ritmo e a cadência necessários para manter o clima de crescente envolvimento do leitor – tem como contraponto na música a transposição das notas musicais com seus acordes e com o seu beat. Esta transposição pode ter pouco brilho – como uma bem ensaiada marcha de soldados – ou muito brilho – se for provida de alterações sonoras significativas, notas e acordes dissonantes e um beat invertido, como a batida de um coração emocionado sujeito a modificações constantes, como acontece na passagem de um verso ou de um capítulo de Poe (ou de uma sequência harmônica de Coltrane) para outro.
        Tanto num e como noutro caso, o tema é exposto com perfeição, levando o leitor ou o ouvinte a se integrar na atmosfera proposta pelo escritor ou pelo intérprete, seja esta proposta de leveza, de romance, de alegria ou de introspecção (como nos casos de Poe e de outros autores que exploram o mistério e o macabro ou de Coleman e outros que seguem o irreal e o desconhecido).  
        Na literatura, quando a gente muda de página, seja na obra de Poe e seus seguidores ou de outros autores de estilos diversos, é essencial que as emoções ditadas pela página anterior permaneçam para que a mente do leitor continue integrada na mensagem ou na intenção do escritor.
        O mesmo acontece com o jazz e seus diferentes estilos.
        Seja no jazz tradicional, no swing, em qualquer tipo de bop ou contemporâneo, o jazzista, pelas mãos do intérprete, também mantém em suspenso uma profusão de notas e de acordes que funciona como uma ligação direta entre a sua emoção e a emoção do ouvinte.
        Usei Edgar Allan Poe como exemplo de poeta e escritor, e como consequência Ornette Coleman, Sun Ra e John Coltrane como exemplos de interpretação jazzista, para mostrar como as coisas caminham juntas no mundo da arte. O mesmo raciocínio vale para todos os outros escritores e poetas e todos os outros músicos e jazzistas que aqui não foram mencionados.
        Fazer arte – literatura, música, ou outro tipo de comunicação criativa – só tem sentido quando a nossa obra encontra eco nas pessoas que participam como leitores, ouvintes ou seguidores do nosso trabalho.

 


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