domingo, 7 de julho de 2019





CHEGA DE SAUDADE
(excerto)

Agosto de 1958. Um dia que iria mudar a história do mundo...
As músicas apresentadas naquele programa da hora do almoço pela Rádio Nacional eram anunciadas na ordem inversa, começando pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com o locutor Hélio de Alencar gritando bem ao seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, com João Gilberto, uma novidade em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Nunca tinha ouvido este nome. Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me deixa estático. Não é samba, não é choro, não é samba-choro.
O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito universal que regula o bom gosto musical.
Nas décadas seguintes, ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional, inventiva e absolutamente discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, sempre existiu um divisor de águas entre aqueles que o idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de interagir com o público.
João Gilberto é o avesso do pop-star e representa a música discreta que precisa ser ouvida em silêncio e degustada como um conhaque importado.
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Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de casa, apanhei o ônibus e fui até o chamado centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para adquirir no ato o disco “Chega De Saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos Jobim. No lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP correspondente seria lançado em 1959 incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli) e “Brigas, Nunca Mais” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutandis, teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas que incluem a mim, os amigos da adolescência, a galera carioca do Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os amigos do jazz, o pessoal de Ipanema e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as portas do Reino do Céu.



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