quinta-feira, 9 de abril de 2020







Para quem se interessa por jazz, segue uma entrevista que eu dei para o Almanaque Saraiva em 10 de outubro de 2012.
(Augusto Pellegrini)

É possível precisar “quando”, “onde” e “como” surgiu o jazz?
Não é fácil situar com precisão dentro do tempo como o jazz apareceu, mas é possível traçar algumas coordenadas.
O jazz, como nós o conhecemos hoje em dia é o resultado de uma série de ingredientes que foram sendo acrescentados pelos músicos a partir da última década do século 19, tais como o canto do negro escravo – seja nas work songs seja nos hollers – a louvação religiosa, as formações de bandas militares, as baladas originárias da Europa, o ragtime e principalmente o blues, esse já cultivado desde os anos 1850. Estas influências foram se estreitando para produzirem um som musical absolutamente diferente do convencional, a partir da blue note (notas diminuídas na linha melódica) e do off-beat (uma inversão no acento percussivo), sabiamente explorados por alguns artistas de rara sensibilidade, entre eles o pianista, compositor e ator de vaudeville Jelly Roll Morton.
Convencionou-se dizer que o jazz nasceu em New Orleans, mas na verdade a sua semente se encontrava espalhada em diversos outros lugares à beira do Rio Mississipi, nos estados de Missouri e Carolina do Sul, e em Kansas City. Foi New Orleans, no entanto, que sedimentou o estilo e congregou o maior número de músicos qualificados para interpretá-lo. A cidade, cosmopolita por excelência, oferecia todas as condições para uma revolução musical de tal porte.
Pode-se dizer que o jazz surgiu da necessidade de construir uma música realmente americana, a partir do blues e da miscelânea cultural representada por negros, crioulos, caribenhos, brancos e europeus que habitavam a América e que denunciavam a necessidade de se acabar com a estagnação que a música européia enfrentava havia séculos.

Muitos creditam a Elvis Presley o título de rei do rock. Na sua opinião, quem seria o rei do jazz? Duke Ellington, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis? Por que?
As pessoas sentem a necessidade de classificar por ordem de importância os profissionais de qualquer área que atinjam uma condição de excelência naquilo que fazem. Assim, na música erudita, é muito comum serem atribuídos valores comparativos entre Bach, Beethoven e Mozart, por exemplo, como se fosse possível dar notas de avaliação para o seu trabalho e para a sua genialidade.
O mesmo ocorre com o jazz. Da mesma forma que Elvis foi chamado de “o rei do rock”, Benny Goodman foi denominado “o rei do swing”, sem nenhum demérito a outros grandes músicos do estilo – Artie Shaw, Glenn Miller, Harry James, Count Basie, Chick Webb, só para citar alguns.
Assim, é uma tarefa árdua situar quem teria sido a figura mais importante do jazz, mas nos parece lógico que deva ser alguém dos primórdios, que tenha influenciado todos os demais que vieram a seguir – e isto exclui Parker, Gillespie, Monk, Davis ou Coltrane, todos irrefutáveis inovadores, mas que surgiram na esteira de algo já existente.
Ellington é um caso à parte, pois seu jazz, embora impregnado da negritude do blues, possuía um experimentalismo que de certa forma o afastava da simplicidade e da pureza com que o jazz foi concebido.
Em minha opinião – corroborada por não menos do que Wynton Marsalis e Miles Davis – o grande nome do jazz de todos os tempos, aquele que influenciou todas as gerações de jazzistas, fossem eles trompetistas ou não, foi Louis Armstrong, considerado pelo crítico Gary Giddins como “o Bach, o Dante e o Shakespeare da música americana”. 
     
Ao longo dos anos, o jazz deu origem a alguns subgêneros: do swing ao bebop, do hard bop ao free jazz, entre outros Como o senhor avalia estas variações? O senhor teria alguma favorita entre tantas? Por que?
O jazz sempre se mostrou ser uma música mutável, como de resto o são praticamente todas as manifestações artísticas, sejam elas musicais, cênicas, plásticas ou literárias. As modificações são inevitáveis, principalmente no jazz, um estilo musical que permite liberdade ao executante, fazendo o intérprete muitas vezes se fundir com o compositor. Há que se notar que exceto na passagem do swing para o bebop e dos estilos bop para o free-jazz ou o jazz-fusion, as variações que aconteceram ao longo do tempo não foram bruscas. O jazz tradicional – stomp, blues de New Orleans e Dixieland foi seguido pelo estilo Chicago, uma espécie de ponte entre o tradicional e o swing, a música das grandes orquestras – privilegiando líderes de grupo, maestros e arranjadores. E os estilos bop se seguiram naturalmente, dentro da mesma característica – bebop, hard bop, cool jazz, West Coast, third stream, funky – privilegiando a criatividade do intérprete e o improviso, e a partir do free jazz ele se desvinculou de todas as convenções, possibilitando uma gama de jazz moderno – fusion, smooth, funk, acid –, com uma alta dose de tecnologia, que deu outra característica ao jazz, mas sem descaracterizá-lo.
Pessoalmente prefiro o jazz dos primórdios até os anos 1980, pela minha própria vivência e formação. Digamos que eu sou mais sensível ao jazz tradicional, ao jazz das big bands e aos estilos bop.  

Muitos autores afirmam que o rock teria sido responsável pela, digamos, derrocada do jazz nos anos 60. O que o senhor pensa disso? Essa afirmativa procede?
Essa afirmativa procede em parte, devido ao engajamento da juventude pós-guerra. A juventude sempre teve um papel importante no destino das coisas, especialmente nas artes. É bom lembrar que o swing encontrou seu ponto alto exatamente quando os adolescentes e jovens adultos deram o seu aval, participando das sessões dos ball rooms e “tietando” seus ídolos, e que a invasão do jazz nas universidades se deu exatamente quando os jovens universitários descobriram o West Coast e o cool jazz . Era inevitável, portanto, que a juventude de outra época voltasse sua atenção para outro movimento. Mesmo assim, não houve a “derrocada” do jazz convencional como preconizada. Ele apenas seguiu outro rumo, mais maduro e talvez mais elitista. A incursão de músicos tidos como convencionais dentro do jazz fusion – como Miles Davis e Gil Evans – no entanto, aproximou bastante a juventude do rock ‘n’ roll dos aficionados do jazz, e precipitou o surgimento de outros músicos que agradavam ambas as partes – tradicionais e contemporâneos – como Chick Corea, Pat Metheny e Weather Report.
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Que avaliação o senhor faz do jazz que é feito hoje no Brasil e no mundo? Em pleno século XXI, o gênero continua a evoluir? Ou estaria atravessando um momento de estagnação? Da nova geração, quem são os grandes representantes do gênero aqui e lá fora?
Confesso que no momento não tenho acompanhado a evolução e o movimento do jazz pelo mundo afora. A globalização fez surgir nomes em todo o universo, muitos deles realmente muito bons, e a rotina diária me impede de acompanhar tudo como eu desejaria. Mas o tiro de partida que foi dado no sul dos Estados Unidos na passagem do século 19 para o século 20 provocou uma corrida que não terá mais fim, pela simples razão de que o jazz possibilita milhões de combinações musicais e culturais, e estimula a criatividade a tal ponto que os músicos se multiplicam. É claro que temos que separar o joio do trigo. A expansão mundial do jazz também fez aparecer um sem número de oportunistas que pretendem fazer jazz, mas o que produzem é uma música de qualidade medíocre. Isto pode ser facilmente constatado na internet, que é o Deus e o Diabo nosso de cada dia.
Não consigo declinar os nomes de grandes representantes do gênero, mas seguramente entre os novos nomes que chegaram para ficar estão a cantora e baixista Esperanza Spalding, a jovem cantora Renee Olstead, uma grata surpresa, os saxofonistas-tenor Scheila Gonzalez e Walter Smith III, o trompetista Ambrose Akinmusire e o pianista Fabian Almazan.
O Brasil está produzindo uma boa safra, mesmo tendo se engajado no projeto do jazz com muito atraso em comparação com a Europa. Acredito que a nossa grande marca ainda seja representada por músicos mais veteranos, como a Traditional Jazz Band, o trompetista Claudio Roditi e a pianista Eliane Elias (os dois últimos radicados nos Estados Unidos), a pianista-cantora Tania Maria (radicada na França) e alguns mais jovens, como o Julio Bittencourt Jazz Trio e o trio Delicatessen Jazz. E toda a turma que continua interpretando o bossa-jazz.

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