sexta-feira, 26 de junho de 2020





DANTE E BEATRIZ
(Republicado, extraído de IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO)
Augusto Pellegrini

Dante se aproximou da minha porta. Veio devagar, arrastado, sem vontade.
Veio como se estivesse partindo.
A rigor, Dante estava sempre partindo, e “ritornare” não era verbo do seu uso diário, exceto quando se tratava da minha casa.
Dante dava a impressão quitinosa de um besouro, feio, frio e indeciso.
Tinha ele algum dia chegado a chegar? Tinha ele visto uma aurora sem chuva? Tinha ele algum dia visto o sol, tinha ele algum dia saído do fundo do seu bolso junto com o resto de fumo moído e o feltro esparso?
Tinha ele algum dia visto a própria imagem refletida em um espelho ou era simplesmente um espectro como muitos, um objeto sem consistência, um fluido?
Mais uma vez Dante se aproximou da minha porta.
Mesmo que eu não o visse, sentiria o odor forte de maresia e ouviria o ranger de suas dobradiças mal lubrificadas.
Veio devagar, arrastado, sem vontade. Veio como se estivesse partindo.
Dante – a quem o cão fiel decepou uma das mãos numa mordida de satisfação e a quem eu volto minha atenção mesmo com seu hálito fortemente digestivo, tinha saído pela cidade cavoucando bueiros entupidos por detritos negros onde Beatriz poderia estar escondida, esticando o pescoço para dentro de bares suspeitos onde Beatriz poderia estar escondida, visitando alcovas e lupanares onde Beatriz poderia estar escondida, mas jamais olhou para um espelho e nele viu seus próprios olhos emaciados onde Beatriz estava realmente escondida, diafanamente nua, mergulhada na esclerótica, fantasiando a sua visão de fauno traído.


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