quinta-feira, 5 de agosto de 2021

 


COISAS (1988)
(Augusto Pellegrini)

OBSERVAÇÕES DE UMA ONDA DE PENSAMENTO

           Passava de meia-noite. Os pneus chiavam deslizando pela rua molhada pela chuva e o limpador de para-brisa dizia não com um gemido compassado de tristeza e de agonia.

            Ela, encolhida no banco dianteiro e encostada na porta, olhava para ele ao volante, num constante claro-escuro, manchas no rosto e nas mãos, sombras e luzes de postes e letreiros piscando seus anúncios.

            Eu, escondido no banco de trás, estou imóvel como os seus olhos. Ser profeta não basta, é preciso ser sombra.

            De repente, uma freada brusca e um baque surdo. Os corpos são jogados para frente e se sentem doer, numa crise de abandono.

            Saio então pela janela fechada e vejo os vultos por detrás dos vidros do carro e a dança das gotas da chuva que vão se perdendo no tempo, tudo de repente imóvel como uma fotografia.

            Pouco mais de meia-noite.

                    Acho que vou voltar para dentro do meu cérebro.
  

 (Problemas de um casal em crise de volta para casa numa noite de chuva)


 

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