domingo, 5 de setembro de 2021

 

 


EU E A MÚSICA

UM PIANO NO FIM DA TARDE
Parte 2


      No meio de tanta brancura avistamos como que surgindo do nada um piano negro com a asa aberta, que crescia dentro do cenário emitindo acordes jazzísticos formidáveis. O som e a imagem que chegavam até nós, ao invés de quebrar o encantamento da cena, trazia uma aura de imponderabilidade, como se todo o ambiente tivesse de repente começado a flutuar.
      Caminhei em direção ao piano, com o som do jazz agora ocupando todo o espaço, e num instante reconheci “How About You?” (Burton Lane e Ralph Freed), e por trás do instrumento ninguém menos do que Dick Farney, que também estava ali para uma gravação e naquele instante aquecia os dedos – conforme ele nos confidenciou.
      Dick recebeu nossa intromissão com um semblante sorridente e a expressão levemente enigmática, uma extensão dos seus shows de jazz aos quais eu me habituara a assistir em algumas noites de quarta-feira no auditório de A Folha de São Paulo na Rua Barão de Limeira ou em alguma boate da região central da cidade.
      A sua presença solitária naquela hora e naquele lugar parecia estranhamente etérea e conveniente.
      Mr. Farney não perguntou o que fazíamos no seu território – a parafernália que trazíamos em mãos acho que era mais que suficiente para qualquer bom entendedor – mas isto não nos intimidou e logo travamos uma rápida conversa com ele.
      Afinal, estávamos frente a frente com um dos músicos que ajudaram a escrever a história da música brasileira nos Estados Unidos e que fazia parte de uma revolução de ideias que culminaram com o advento da bossa nova dez anos antes, usando como recurso apenas a sua voz e seu piano, como se isso fosse pouco.
      Além de “How About You” Farney gravara standards famosos como “She’s Funny That Way” (Richard A.Whiting e Neil Moret), “These Foolish Things” (Jack Strachey, Holt Marvell e Harry Link), “What’s New?” (Johnny Burke e Bob Haggard) e “You Go To My Head” (J.Fred Coots e Haven Gillespie). A gravação de Farney feita nos Estados Unidos em 1947 para a música “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) havia sido feita em primeira mão, antes mesmo das versões de Sinatra e Nat “King”Cole.  
      Tudo isto sem prejuízo da discografia nacional do final da década de 1940 e de toda a década de 1950, com gravações que serviram de base histórica para o surgimento da bossa nova – “Perdido De Amor” (Luiz Bonfá), “Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Nick Bar” (Garoto e José Vasconcelos), “Você Se Lembra” (Haroldo Eiras e Victor Berbara), “A Saudade Mata A Gente” (Antônio Almeida e João de Barro), “Um Cantinho E Você” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Se O Tempo Entendesse” (Marino Pinto e Mario Rossi), “Somos Dois” (Armando Cavalcanti, Luiz Antônio e Klécius Caldas), “Ponto Final” (Alberto Ribeiro e José Maria de Abreu), “Outra Vez” (Antônio Carlos Jobim) e outras tantas maravilhas.
      Dick Farney sempre se interessou pelo jazz e pelos clássicos americanos, tanto na voz quanto tocando piano, e seu debut na Radio Cruzeiro do Sul foi cantando a mais improvável das musicas – “Deep Purple” (Peter DeRose e Mitchell Parish), na época em que os cantores amadores se especializavam em Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e Assis Valente.
      Ele apareceu na música brasileira no local e na hora certa – Rio de Janeiro, num momento em que a juventude carioca frequentava a Lojas Murray em busca do que havia de mais moderno em discos de jazz e standards – e provocou inclusive a criação do primeiro fã-clube de que se tem notícia no Brasil, o Sinatra-Farney Fan Club), que infelizmente durou apenas um ano.

                                                            -0-
 
      A nossa filmagem se deu mais tarde, em um ponto distante de onde estava Dick Farney, mas não pude deixar de me quedar estático durante um bom tempo me inebriando com o som daquele piano no fim da tarde. E aquele som – “I like New York in June, how about you?”... – acompanhou o nosso trabalho como uma benfazeja e inesperada trilha sonora.
      Afinal, o filme era mudo, mas felizmente não era surdo...

 

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