segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

 


    PÁGINAS ESCOLHIDAS

O FANTASMA DA FM (1992)
(Augusto Pellegrini)

A GULA

O escritor François Rabelais se frustrou ao tentar fazer um obra que ele próprio define como “uma alta realização do espírito humano” – O Gigante Gargântua – nos idos de 1532. O herói, filho de Grandgousier e da linda Gargamelle, era uma espécie de Frankenstein inocente – de acordo com os críticos da obra, “rare et subtil, charmant, jovial et gentil” – mas em momento algum tem qualquer resquício de exaltação à raça humana.

O personagem não chegou a superar o criador, pois não é fácil se sobrepor à genialidade de Rabelais, mas acabou transformando uma tentativa filosófica de relatar as fraquezas da gula num encômio à própria gula, não só pela quantidade e diversificação dos gêneros engolidos durante as quase duzentas páginas do livro como também pela tonelagem de vinhos e aguardentes ingeridos – “é a vós, ilustres beberrões, que são dedicados os meus escritos e a mais ninguém!”.

É a esta gula, sentimento nobre que impulsiona o mundo, que dedico este prólogo, reforçado por um veemente protesto contra as clínicas de emagrecimento, contra esses torturadores medievais que se autoproclamam médicos dietéticos e contra todos os malhadores de academia.

As mulheres retratadas em tela pelos pintores renascentistas, com suas maravilhosas adiposidades, não me deixam mentir.  

(Prólogo de um trabalho experimental sobre a gula e seus preconceitos)


 

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