sexta-feira, 22 de abril de 2022

                         


                                                                PÁGINAS ESCOLHIDAS

À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)

CONTRANEXO

Tomar licor de maçã no Restaurante do Dante é apenas parte da minha provação. Na falta de um Virgilio, tento conversar com um velho que percebi ser meio surdo, e lhe ofereço um conhaque de alcatrão, que ele sorve aos pequenos sorvos.

Depois de algumas perguntas e respostas desencontradas, desisti de fazer do velho o meu parceiro nesta viagem e decido agora que o gato que se enrosca na cadeira de palha trançada seja o meu Cérbero, parte felino e parte mulher, pois me lembra Rebeca, a mulher inesquecível.

Já passam de duas da manhã, peço mais uma dose de licor – a última, por favor – e o licor me vem junto com a conta com cheiro de peixe defumado.

Um cachorro insiste em latir para as almas do outro mundo que espantam a madrugada, o gato insiste em dormir e o licor já está com gosto de chá de ervas com aguardente, um santo remédio para a rouquidão, uma explosão no esôfago, e depois tome boldo – baldes de boldo – de preferência do Chile, onde o boldo é mais puro assim como o uísque na Escócia, sem gosto de iodo, vinho de sorgo, vinho do sogro, marca Valdevino.

Dante me faz um ultimo favor e me acompanha até a soleira da porta, o mármore já gasto, para ter certeza de que vou mesmo embora, dou um derradeiro adeus para o gato e já não vejo o fantasma de Rebeca ao lado dele.

O gato se espreguiça como um ponto de interrogação, ao mesmo tempo em que o ruído da porta de enrolar atravessa a noite como uma facada, me olhando com o olhar de boa noite que só os gatos sabem ter.

(Um passeio pelo Inferno de Dante no início da madrugada) 




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