sábado, 29 de outubro de 2022

 


PÁGINAS ESCOLHIDAS

De um livro de contos que ainda não foi publicado
(Augusto Pellegrini)

EL CAPITÁN

16 de julho, oito e meia da noite.

A brisa sopra, vinda da orla, e acalma o calor do dia que até pouco se refletia com intensidade nas calçadas, nas ruas forradas de paralelepípedos e nos edifícios comerciais, a esta altura desertos.

A avenida beirando o mar ainda guarda alguns noctívagos soturnos que se arrastam e se confundem como garatujas solitárias.

O caudilho mulato, com a expressão arrogante dos vencedores, vaga solitário pela cidade e se embrenha pelas ruas secundárias desertas, adornadas por luzes fracas dependuradas em negros postes metálicos cujas bases são fixadas em capitéis trabalhados na época da proclamação da República. O seu rosto não traduz alegria, apenas a empáfia daqueles que se sentem superiores.

Nem uma alma nas ruas, nem um cão vadio.

Ele entra num bar, um dos poucos que ainda se mantém abertos, pede uma cerveja e observa a cara desconsolada do atendente atrás do balcão de mármore e os olhos vermelhos de um homem com a barba por fazer, que a seu lado olha opacamente através de uma taça de conhaque.

Preso à parede, um velho ventilador procura aliviar o ar abafado com cheiro de cerveja velha.

O caudilho lembrou-se da algazarra de horas atrás, da manhã agitada com o alarido das buzinas, dos foguetes espocando ao sol a pino e do papel picado que agora o vento frio levanta do chão como uma vassoura invisível. O clima agora é lúgubre, e a noite se reveste de tantas lágrimas que El Capitán Obdúlio Varela de repente se lamentou por haver conquistado aquele título histórico e por haver zombado dos derrotados naquela tarde de sol.

O Rio amanhecera sorrindo, e o Redentor, já com os braços abertos sobre a Guanabara, parecia saudar prematuramente o Brasil campeão do mundo.

Afinal, depois de despachar adversários temíveis com uma profusão de gols, o Brasil estava de bem com a vida. O futebol era exuberante, a inflação era irrisória, gozávamos da total confiança do presidente Dutra e da imprensa ufanista, e bastava um simples empate contra os inexpressivos uruguaios – um time bastante brioso, de acordo com o dicionário esportivo da época, mas de técnica um tanto quanto questionável – para ocuparmos um lugar na história.

Veio a tarde de sol, e o estádio novinho, cheirando a tinta, inchava no seu bojo para conter aquelas mais de duzentas mil pessoas em festa, enquanto milhões ouviam pelo rádio, que a televisão ainda não havia chegado por ali.

Ambulantes, pracinhas do exército, sujeitos engravatados com bigodes conspícuos, mulheres com penteado de rolo, motoristas de ônibus, funcionários públicos, figuras exóticas sem dentes, todos comungando um só pensamento, uma só alegria que aquele negro desgraçado haveria de surrupiar.

O jogo começou num clima de carnaval. O time brasileiro estava arrasador, e um gol anotado logo no início do segundo tempo prenunciava as delícias de um chope noturno em Copacabana com a faixa de campeão, tendo o samba da Portela – “vem ver quem ainda não viu as riquezas do nosso Brasil” – como fundo musical.  

Mas com o passar do tempo o céu nublou.

Schiaffino anotou o empate, provocando murmúrios aflitivos na plateia, e aí veio Ghiggia, matando Barbosa com um tiro cruzado certeiro, e o murmúrio se transformou no mais pesado silêncio coletivo de que se tem notícia.

Tudo foi diminuindo no time brasileiro – a força de um, a raça de outro, a imponência de todos – e as pernas foram se acovardando pela cancha, enquanto o tempo corria célere em direção ao infame destino.

Acabou o jogo e começaram as lágrimas, os uruguaios festejando ali, bem na frente do nosso nariz, erguendo o pequeno troféu alado, que viajaria para Montevidéu de cara amarrada, ele, que teria ficado em nossas terras, tivessem sido os deuses do futebol mais justos.

A noite não estava tão fria, e o céu de inverno até que estava estrelado. A aragem fresca soprava vinda do mar e a luz da lua empalidecia a imensa areia branca.

O mar cantava no seu sobe e desce como se fosse uma sereia seduzindo tudo o que se encontrasse ao redor.

O caudilho sentiu o impacto da tragédia bem dentro da alma e estremeceu ligeiramente diante do copo de cerveja, que sabia amarga.

 

 

 

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