segunda-feira, 19 de outubro de 2015






EU E A MÚSICA
A SÃO PAULO DE ADONIRAN BARBOSA
(...de Joca, Mato Grosso e Iracema)

Meu São Paulo
foi da garoa, tempo frio que já mudou.
Cantada pelo filho do italiano
está mais quente a cada ano,
é o samba urbano que chegou.
Bexiga, Barra Funda, Lapa e Mooca,
e a maloca que, saudosa,
hoje não existe mais,
porém a caravana colorida
evolui na avenida
evocando os bons tempos do Brás

Com empolgação,
meu São Paulo é um poema
de Malvina, Adoniran,
Mato Grosso e Iracema.

Trem das onze,
as mariposas vão sambando na estação,
lembrando da moçada o sacrifício,
a derrubada do edifício,
o antigo Albion.
Acende o candeeiro de mansinho,
traz de volta o cavaquinho
pra encantar meu bem querer.
Cidade de trabalho e de progresso,
seu poeta e seu sucesso
nós vamos cantar outra vez
...”

(“A São Paulo De Adoniran Barbosade Augusto Pellegrini)

Esta é a letra de um samba que eu fiz em homenagem a Adoniran Barbosa no ano de 1975 para concorrer à escolha do samba-enredo para o carnaval de 1976 pela G.R.E.S. Escola de Samba Pérola Negra, Vila Madalena, São Paulo, cujo tema era exatamente “A São Paulo de Adoniran Barbosa”. A música concorreu, não ganhou, mas eu me senti premiado por ter convivido com o poeta, ainda que por breves instantes, pois isso enriqueceu a minha alma.
Gostaria de ter absorvido mais um pouco da sensibilidade de Adoniran, mas o nosso tempo foi muito curto. Enfim, como ele mesmo dizia – “mas isso num faz mal, num tem ‘portança’...”

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Desde muito jovem a música sempre me encantou.
Talvez por isso eu gostasse de exercitar o meu lado compositor, na maioria das vezes fazendo sozinho a letra e a melodia da música, mesmo não conhecendo coisa alguma sobre teoria musical nem tendo a prática de executar qualquer instrumento.
A música era produzida dentro da minha cabeça, e eu tinha que a cantarolar dezenas de vezes para não esquecer a linha melódica. Enquanto isso, o arranjo e a orquestração – violão, violinos, metais, piano, percussão – iam tomando sua forma definitiva, mas sempre dentro da minha cabeça.
Os compositores leigos, como eu, sabem do que eu estou falando.
Isto causava sérios problemas quando eu queria cantar as minhas composições acompanhado por algum instrumentista, pois evidentemente a harmonia que ele extraía do instrumento era bem diferente daquela que eu havia concebido.
Quando comecei as minhas tentativas, fui influenciado pela música brasileira da época – coisas de Antônio Maria, Dolores Duran, Alberto Ribeiro, Tito Madi, Fernando Cesar, Klécius Caldas, Armando Cavalcante, Henrique Lobo e Luiz Bittencourt, todos autores de sambas-canções que eram interpretados com alma pela mesma Dolores, pelo próprio Tito Madi, por Nora Ney, Agostinho dos Santos, Dóris Monteiro, Lucio Alves, Cauby Peixoto, Dick Farney e alguns outros tantos.
Mesmo assim, a minha música não possuía as características específicas do samba-canção e não obedecia à configuração tradicional dos seus versos, uma sequência de primeira estrofe-segunda estrofe, pois o samba-canção convencional não utiliza refrãos com frequência.
Além do mais, eu “quebrava” a melodia às vezes de forma inusitada, coisa típica – de acordo com a opinião de músicos e especialistas – de quem não é engessado pela teoria e sente mais liberdade para simplesmente expor seus sentimentos.

Sozinho pela madrugada
não procuro amigos,
só procuro paz.
Partiu, não me disse nada,
não deixou resposta, não,
isso não se faz...

Eu tenho um pressentimento que me fala
mais alto que o desalento que em mim cala.
Nunca mais encontrarei quem me consola,
e dos sonhos que sonhei eu vivo agora
...

Sozinho pela madrugada,
não procuro amigos,
só procuro paz.
É muito fácil compreender,
mas é difícil resistir.
Sozinho pela madrugada,
vou ficando triste,
vou ficando só
...”

(“Sozinho Pela Madrugadade Augusto Pellegrini)
 
Mas logo chegou a bossa nova, e eu incorporei o estilo às minhas composições, sem abandonar o jeito da canção e do samba-canção. E continuei distante daquilo que João Gilberto chamava de “samba autêntico” – tipo Ary Barroso, Assis Valente, Ataulfo Alves, Dênis Brean – como também do samba-canção tipo deprê, também chamado “dor-de-cotovelo” – Lupicínio Rodrigues, Fernando Lobo, Herivelto Martins, Jair Amorim – que abordava o romantismo de forma dramática, como o tango, e dos quais eu até gostava, mas não me identificava a ponto de compor coisas do gênero.
A bossa nova me mostrou que a gente podia fazer poesia com as coisas mais simples do dia-a-dia e da natureza, sem necessidade de utilizar parnasianismos ou erudição nas palavras.

Descanso,
é gostoso de ver
as nuvens brincando,
e figuras formando
bem alto, no alto do céu,
não penso,
quero fugir da vida
como o dia perdido
no qual eu fugi de ti.

Morreu o sol,
escurece depressa
igual ao momento
em que escureceu
o dia sem luz que eu vivi.
Desperto,
meu descanso não era,
era sonho, quimera,
eu não fujo, eu não posso fugir
...”

(“Descansode Augusto Pellegrini)

Por trabalhar dentro dessa linha de composição, foi com muita surpresa que recebi em 1974 um convite para ingressar na ala de compositores da paulistana Pérola Negra, que na época era recém-egressa do Grupo B.
O convite partiu de um dos integrantes da ala, um engenheiro chamado Francisco Siqueira, sambista bissexto que eu conheci por força do meu ofício, o nada romântico trabalho de inspecionar equipamentos, o que eventualmente acontecia na indústria onde ele era o gerente industrial.
A princípio relutei em aceitar, pois aquilo ia contra todas as convicções musicais que eu havia cultivado até então – jazz, samba-canção, bossa nova – mas dada à insistência do Chico acabei aceitando o desafio.
Fiquei na escola durante seis anos, fiz parceria com o Chico Siqueira e com outros compositores, participei das festividades regulares, dos eventos de samba de quadra, dos ensaios na rua, das escolhas dos sambas-enredos, e logrei ser o vencedor em 1979 com o samba “Carnaval, Intrigas e Opiniões” – cujo tema era as discussões sobre a origem do samba – em parceria com meu depois compadre Nelson Gengo (música gravada em LP 230023 pela CBS e elogiada em um artigo de 15 de fevereiro de 1979 no Jornal do Brasil pelo crítico musical José Ramos Tinhorão, um luxo!).

Até parece que o samba
procura imitar a vida
as divergências da história
permanecem na memória.
Nascido no Cariri,
ou então em Salvador,
se veio da ginga dos bambas
ou do jongo do interior,
importante é conseguir
unir todas as correntes,
fazendo com alegria
o canto da nossa gente

Samba, sambé, sembahó
ou sambaquixaba,
passado que todos discutem,
futuro que nunca se acaba.

Eram castanholas e pandeiros,
depois flauta e cavaquinho.
Intrigas e opiniões
jamais dividirão
os nossos corações.
No céu um repinique de estrelas
mostrando o carnaval de amanhã,
na terra virá a Pérola Negra
sambando ao som de Aldebarã

(“Carnaval, Intrigas e OpiniõesAugusto Pellegrini e Nelson “Zurumba” Gengo)

Por ocasião dos desfiles os compositores eram também responsáveis pela harmonia da escola, o que nos permitia participar deles como um todo, percorrendo o trajeto em toda a sua extensão, indo e voltando, e tentando manter as diversas alas cantando em uníssono e com entusiasmo, evitando também o aparecimento de espaços em branco entre os sambistas, o que a nomenclatura do samba chama de “buraco”.
Era empolgante a gente se sentir iluminado pelos holofotes, sustentados por uma bateria vibrante e por uma alegria contagiante que descia das arquibancadas para a avenida, que naquele tempo ainda não era chamada de “passarela do samba”.
Durante o ano a escola se dividia em múltiplas atividades, todas voltadas para a execução de um desfile perfeito. A bateria ensaiava paradinhas e filigranas sob a batuta do seu mestre; o cantor principal, chamado de “puxador” cantava o samba-enredo por horas a fio para afinar as cordas vocais e depois fazer com que todos os elementos da escola memorizassem o samba; as costureiras, em geral familiares dos participantes, produziam as fantasias elaboradas pelo diretor de carnaval, que acumulava as funções de figurinista; os artistas plásticos se confinavam em galpões escondidos dos olhos do mundo e preparavam as alegorias e os carros alegóricos.

                                                                      -0-

Foi nesse ambiente ímpar que eu conheci uma figura também ímpar do poeta popular Adoniran Barbosa.
Adoniran era, ao lado do conjunto Os Demônios da Garoa e do sambista Germano Mathias, o mais legítimo interprete das coisas de São Paulo, e se dava ao luxo de atentar contra a língua portuguesa sem o menor pudor, uma homenagem aos seus avós que como tantos outros italianos aportaram na cidade no final do século 19 para tentar uma vida mais digna.
Foi um batalhador em busca de um lugar ao sol, trabalhando como comediante, locutor e cantor tão logo conseguiu vislumbrar a oportunidade de mostrar o seu talento nas ondas do radio. 
Entre outras coisas, Adoniran também era um compositor que não conhecia teoria musical. O espírito urbano das suas composições retratava o ator que morava nele, às vezes histrião, às vezes irônico, às vezes dramático, como de resto o era a sua interpretação como cantor.
De certa forma éramos dois peixes fora d’água que se encontravam no mesmo lugar, sob o mesmo céu estrelado, sem ter muita relação histórica com o que se passava ao redor.
Havíamos aceitado o desafio, eu como compositor, ele como protagonista, e estávamos no mesmo barco até que o mesmo chegasse ao nosso porto seguro.
Numa escola de samba, as pessoas que são homenageadas com o tema assumem a condição de padrinhos e madrinhas da associação durante o período que vai da escolha do tema pela comissão de carnaval até o dia do desfile.
Nessa condição, elas frequentam a escola durante os ensaios, decidem se vão desfilar e de que forma irão desfilar e se tornam amigos de todos, desde os membros da diretoria até o sambista de ala mais humilde, embora poucas vezes esta amizade se prolongue depois do carnaval.
Um dos pontos altos da celebração é a escolha do samba-enredo, quando o personagem do tema participa de uma festa com direito a ouvir e apreciar mais de uma dezena de sambas feitos em sua homenagem.
Adoniran não era habituado a comparecer a ensaios, pois os mesmos duravam horas a fio, e o poeta, apesar de apreciar o sereno que lhe dava inspiração, não tinha na alma a retumbância de surdos e alto-falantes, mas o aconchego de uma cantina ou de uma esquina à luz de um poste, onde ele podia sussurrar poesia com sua pouca voz ao lado de uma taça de vinho ou de um violão solitário e preguiçoso.
Aparentemente também, Adoniran não chegou a se comover pelo fato de ser cantado em prosa e verso. Ele, que já cantara tantos personagens, fictícios ou não – Iracema, Ernesto, Nicola, Malvina, Pafúncia, Mato Grosso, Joca, Geralda – sabia conviver perfeitamente com essa inversão de papeis.
Mas na noite da escolha do samba-enredo ele lá estava, de bigodinho aparado, chapéu e gravata borboleta, só faltava o cachecol que o acompanhava nas noites garoentas de São Paulo, e se mostrava muito animado.
Seus olhos miúdos brilhavam com a intensidade dos olhos de um gato e seu sorriso com o canto da boca equilibrava o costumeiro cigarro sem filtro que aceleraria a sua morte oito anos depois.
Ele percorreu várias mesas para cumprimentar as pessoas que o aplaudiam, subiu ao palco para receber homenagens enquanto era saudado pelo presidente da escola – o que de certa forma o constrangeu, homem simples que era – e terminou na chamada “mesa da diretoria” onde sentavam alguns diretores e compositores, e onde a cerveja rolava ao som do samba.
Amante de um bom uísque, Adoniran foi presenteado com uma garrafa e um balde de gelo, com o que se regalou.
Um diretor se desculpou pela pobreza da agremiação, que na impossibilidade de lhe oferecer algo mais requintado optou pelo brasileiríssimo Old Eight e algumas peças de frango a passarinho feito por uma das tias da escola.
Adoniran se limitou a responder – “num tem portança” – e em pouco mais de uma hora secou a garrafa.

 

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