sábado, 24 de outubro de 2015


 
 
 

EU E A MÚSICA
DIAGONAL
(a transversal que liga a bossa ao jazz)

A tranquila cidade de São Paulo oferecia durante os anos 1960 um fantástico circuito de barzinhos que fizeram parte da renovação da música brasileira logo após o surgimento da bossa nova.
O mapa do bom gosto era praticamente confinado ao bairro da Consolação – Praça Roosevelt e arredores – onde a noite fervilhava de boa música com Djalma Ferreira, Dick Farney, Ana Lúcia, Ed Lincoln, Sambalanço Trio, Leny Andrade, Araken Peixoto, Geraldo Cunha, Luiz Carlos Paraná e tantos outros.
Vários tipos de pessoas se misturavam na noite sem fim, às vezes curtindo um espetáculo vanguardista no Teatro de Arena ou uma sessão de cinema também vanguardista no Cine Bijou para depois encerrar a noitada no Bar Redondo, reduto de toda a fauna boêmia que se possa imaginar, até que chegasse o alvorecer a pleno sol.
A música corria leve e solta no Farney’s (que depois virou Djalma’s), no Bon Soir, no Stardust ou no Cave – ou no Lancaster, na Rua Augusta.
Mais adiante, na Vila Buarque, incrustada no quadrilátero dos chamados inferninhos, também havia o Baiúca (a primeira casa e introduzir este tipo de show), o Ela Cravo e Canela, o João Sebastião Bar e dois quarteirões acima o Bar Sem Nome, na região das Faculdades Mackenzie e USP-Filosofia, local geográfico que foi palco de muita pancadaria entre partidários a favor e contra a revolução de 1964.
O Bar Sem Nome era o reduto do jovem Chico Buarque – “Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem” – de Zé Keti, quando ele se encontrava na Paulicéia  – “se eu precisar algum dia de ir pro batente não sei o que será...” (“Que será de mim”, de Ismael Silva) – e do também jovem e talentoso Chico Maranhão, dono da “Mulata Abençoada” e da “Gabriela”, que bem podiam ser a mesma pessoa.   
Em contraponto com a noite da Praça Roosevelt, não muito longe dali, em outra praça, a das Bandeiras, que ficava no início da Avenida Nove de Julho, havia o Claridge (depois Cambridge) Hotel, cujo American bar apresentava o mesmo tipo de música, mas voltado para aqueles que não exercitavam hábitos noctívagos, pois abria as portas já no início da noite, para um discreto “happy hour” de shows semiacústicos com a presença de astros como Zimbo Trio, Manfredo Fest Trio, Bossa Jazz Trio, Alaíde Costa, Claudette Soares, Pedrinho Mattar Trio, Cesar Camargo Mariano e Johnny Alf.
O bar do Claridge era o que havia de chique naquele meado de século, uma mistura da modernidade que começava a dominar o país com a influência da escola arquitetônica de Brasília e da decoração dos filmes da Atlântida com traços dos anos 1920 – cadeiras estofadas, mesas e painéis decorados à art-nouveau, arandelas com luz indireta e vidro fosco desenhado – e um discreto foco de luz sobre o praticável onde os músicos se apresentavam para o público.
Eu tinha o hábito de frequentar o Claridge na medida em que meus bolsos permitiam, e passava algumas horas de encantamento sorvendo algumas cubas-libres (se bem me lembro, com alguns amendoins bem torrados) e me inebriando com aquela música especial que preenchia o espaço refinado do local.
Mesmo quando não havia algum espetáculo programado ou nos intervalos das apresentações, o show continuava, pois a casa tocava um west-coast discreto que variava de Chet Baker a Shorty Rogers, ou alguma coisa estilo third stream que tanto podia ser o Modern Jazz Quartet como Dave Brubeck e seu quarteto, tudo para tornar o ambiente realmente acolhedor.
Ao contrário da maioria dos bares e boates, as conversas aconteciam em voz baixa e não se ouviam as irritantes gargalhadas de algum piadista desprovido da capacidade de ouvir e entender música de qualidade. O som da casa era perfeito e realçava os atributos dos músicos e do cantor.
Num daqueles inícios de noite, lá estava eu acompanhado pelo meu amigo José Roberto “Pulga” Marques, que recebera este apelido porque era miúdo como um jóquei, mas um pianista competente e um gigante de gosto apurado. Nossa missão era conferir nos detalhes uma apresentação de Johnny Alf, figura carismática do movimento pré-bossa nova e do seu derivado, o bossa-jazz.
Como cantor e compositor pré-bossa, Johnny não se alinhava exatamente na nova postura dogmática da linha Lyra-Menescal-Gilberto, pois sua bossa-jazz tinha traços definitivos do antigo samba-canção de Dolores Duran e Custódio Mesquita, um pouco da fase inicial de Tom Jobim e um piano cujo drive denunciava toda uma escola jazzística a que ele fora submetido.
Seu forte não era a nova batida do violão trazida por João Gilberto e compartilhada por Carlos Lyra, Roberto Menescal, Durval Ferreira e outros mais. Seu forte era um piano impregnado de jazz, produzindo um som dissonante que variava entre Lennie Tristano e George Shearing. E um vocal que remetia a Mel Thormé, entoando melodias repletas de dissonâncias e modulações complicadas.   
Pulga tinha a seu crédito o fato de ter-me apresentado ao primeiro LP de Johnny Alf, chamado “Rapaz de Bem”, que eu frequentemente ouvia em casa com a atenção e a fascinação que lhe eram merecidas.
Evidentemente, a aquisição de outros discos do cantor seria apenas uma consequência natural, e a presença de Johnny no Claridge naquela noite foi motivo de festa.

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Enquanto rolava a apresentação, com a malícia e a sutileza de Johnny Alf – eu e o amigo Pulga, sorvíamos os goles da cuba-libre no copo longo e suado e ouvíamos em silêncio, absolutamente concentrados, as músicas que iam se sucedendo – “Ilusão À Toa”, “Fim De Semana Em Eldorado”, “Tudo Distante De Mim”, “Escuta”, “Vem”, “O Que É Amar”, “Céu E Mar”, “Seu Chopin, Desculpe” e outras preciosidades, todas composições de Johnny Alf, e as deliciosas “Penso Em Você” (Fernando Lobo e Paulo Soledade), “Feitiçaria” (Custódio Mesquita e Evaldo Ruy) e “Despedida De Mangueira” (Benedito Lacerda e Aldo Cabral).
A nossa mesa ficava próxima ao palco.
Enquanto Johnny sorria agradecendo os aplausos depois de mais uma interpretação de tirar o chapéu, eu me enchi de coragem e, sob o olhar curioso do amigo Pulga, pedi, no impulso da empolgação – “Johnny, canta Diagonal!”.
Diagonal” (Maurício Einhorn e Durval Ferreira) é uma música que faz parte do seu segundo LP, gravado em 1965.
Em “Diagonal” Johnny não canta a letra da música, mas faz um notável “scat-singing”, a exemplo do que havia feito em “Tema Sem Palavras” (dos mesmos Mauricio Einhorn e Durval Ferreira) e “Que Vou Dizer Eu?” (Victor Freire e Klécius Caldas) no primeiro LP em 1961.
No caso de “Diagonal”, porém, ele faz um duplo “scat-singing”, pois executa um contracanto com ele próprio.
Não dá pra cantar essa música” – disse Johnny gentilmente – “pois falta uma segunda voz para fazer o contracanto”, ao que eu, que conhecia a música de cor, tanto o canto quanto o contracanto, atrevidamente repliquei - “eu posso fazer a segunda voz...”.
Johnny meditou por alguns segundos, colocou o microfone que ele tinha junto ao piano mais para o lado, a fim de possibilitar o seu uso para duas pessoas, e simplesmente me convidou para subir ao palco!
Uma vez atrevido, atrevido e meio.
O baixista e o baterista (não me recordo quem eram) me olharam meio desconfiados, mas a um sinal de Johnny eles começaram a introdução.
Sem titubear, comecei a cantar com o meu ídolo, respondendo a sua primeira frase -  Tara (taturá) parutaratutára (pararaturará)...” - sem me intimidar nem ficar vermelho.
Não me lembro com detalhes como ficou o dueto, mas ao final o público aplaudiu e o amigo Pulga congratulou-se comigo. Os músicos sorriram, e Johnny continuou o show como se tudo tivesse sido ensaiado.
Mesmo tendo privado posteriormente de uma certa amizade com Johnny Alf antes de ele voltar a residir no Rio de Janeiro, graças a alguns amigos que tínhamos em comum, o “happy hour” do Claridge se tornou inesquecível, e o breve contato que mantivemos naquela noite apenas comprovou a grandeza de alma de um artista que compensava a complexidade da sua criação musical com a simplicidade da sua condição de ser humano.

 

 

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