sábado, 7 de outubro de 2017






Este conto, escrito no final da década de 1960, foi publicado em 1988 no meu livro “Coisas – Autobiografia Crítica dos Anos 60”



IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO

(Parte Um)

Dante se aproximou da minha porta. Veio devagar, arrastado, sem vontade. Veio como se estivesse partindo.
A rigor, Dante estava sempre partindo, e “ritornare” não era verbo de seu uso diário, exceto quando se tratava da minha casa. Dante dava a impressão quitinosa de um besouro, feio, frio e indeciso.
Tinha ele algum dia chegado a chegar? Tinha algum dia contemplado uma aurora sem chuva? Tinha algum dia visto o sol brilhar? Tinha algum dia saído do fundo do seu bolso, junto com o fumo moído e o feltro esparso?
Tinha ele visto algum dia a sua própria imagem refletida em um espelho, ou era simplesmente um espectro, como muitos, um objeto sem consistência, um mero fluido?
Mais uma vez, Dante se aproximou da minha porta. Veio como se estivesse partindo.

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Passei a noite inteira com enxaqueca, uma indisposição de estourar, de maldizer defuntos. Existe o vazio? – eu era o vazio.
Vamos, riam, digam que não é necessário exagerar, afinal não cheguei a morrer nem nada, e isso ficou provado pela imensa dor de barriga e o seu irrefutável produto, e com ela os suores frios que brotavam e escorriam pela testa febril.
 Os que dizem que a gula é um pecado capital é porque nunca provaram rãs fritas no arroz de açafrão, anchovas com amêndoas ou ovas de esturjão na manteiga, é porque passam fome, e a fome ninguém diz que é pecado capital.
Ainda bem que eu pelo menos podia sentar, fosse há algumas semanas e nem isso teria sido possível, pois uma inflamação vulcânica irrompera bem no finzinho da espinha, e foram necessários dez dias de emplastros e cataplasmas para se desfazer a impressão de eu estar sentado na boca de um dragão.
Ainda bem que eu podia pelo menos sentar, pois fiquei a noite inteira nessa posição, e também parte do dia – se eu me deitasse, o quarto começava a girar em graus, grados e radianos. O tique-taque do relógio-despertador parecia o andar calculado de um facínora.
O dragão agora está no meu estômago, e no meu esôfago, e nos meus intestinos grosso e delgado, entalado como um espinho vomitando fogo candente.
Indigestão vá lá, isso até eu suportaria, desde que preestabelecidas as regras do combate. Mas as ostras  têm uma mentalidade deformada, e quando cismam de arrasar organismos, não há bom conselheiro que as faça mudar de idéia. É uma questão de incompatibilidade, creio eu, pois nem todos os antiácidos do mundo nem sequer o chá de folha de goiaba receitado pela avó conseguiram servir de mediador, como fazem os advogados com os cônjuges mal parados, e tudo teve que se resolver pelas vias normais.  
A gula é um pecado capital, pois bem, que seja! Comi as malditas “senza voler dare tempo al tempo e nemmeno assaggiarle, dannate ostriche, putride ostriche!” – como diria Dante, com suas imprecações operísticas. Comi as malditas deixando sal e limão escorregarem sobre a sua escorregadia figura e as engolindo trêmulas como se ainda vivessem. Eu sei, são quase que apenas compostas de água e de uma pequena parte de um mineral inócuo, parecem horrorosamente inofensivas, mas não intoxicam – matam.
Matam como uma doença danada.


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