quinta-feira, 12 de outubro de 2017





IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO
1988

(Parte Cinco)

Paganini toca no estéreo da sala com o violino de Grumiaux, e com as mãos de Grumiaux, e com o pescoço de Grumiaux, e com os olhos cerrados de Grumiaux. Eu o sinto, eu o vejo, demoníaco, mergulhado na sombra, com a expressão de fauno por detrás da capa negra, trazendo com ele as diabruras de mil diabos.
Dante ainda gesticula enquanto eu me dirijo à janela à procura de olhares mal intencionados e de passos mal caminhados, sentindo nas narinas um odor acre que emana de alguma venta diabólica.
Padre não sou, e se fosse não seria confessor. Louco não sou, e se fosse não seria confidente. Não sou filósofo, nem filantropo. Que faço então na minha sala ouvindo as lamúrias de Dante com remates em mi sustenido de Nicolò –“ho lasciato tutto per uma donnaccia” – emoldurados por imprecações tamanhas que a imagem tranqüila do avô assentada no porta-retrato se recolhe para baixo do móvel, ele que nunca ouviu alguém falar italiano, nem na temporada lírica.
Dante termina se dando um profundo soco no peito, e depois tira do bolso da calça cor de azeitona uns papéis cheios de dobras que desde já sei tratar-se de outros poemas pessimistas falando da sua paixão não correspondida, dos seus desejos contidos e da sua misantropia, para que eu e todos os diabos presentes lêssemos ou ouvíssemos com o cenho carregado.
O séqüito do Grande Imundo cresceu tanto que nem todos os horrores já perpetrados, nem todas as leviandades, nem todas as guerras e abominações são repasto suficiente para essa enorme família das trevas. O que cada alma viva faz é esperar pacientemente pelo fim dos tempos, seja Dante cheio de lágrimas ou Beatriz com os seus olhos negros, seja o rapaz de óculos de aro grosso lendo o existencialismo de Sartre ou a menina-moça de blusa vermelha entretida com a leitura erótica, seja o guarda-livros fazendo as suas estripulias contábeis ou o sodomita fazendo suas mágicas, seja o vigário com seus exorcismos ou a freira com seus tremores ocultos sob a tenda engomada, seja Nils, Britt ou Gonzaga.
Os diabos não mudam, apenas se multiplicam, são a mesma coisa desde o início dos tempos, quando o homem e a mulher foram defenestrados do Éden sem direito a roupa, bagagem ou passaporte, tudo por obra e arte do Onipotente, que os colocou diante de um sério dilema – trabalha ou morre de inanição, pois não mais terás direito aos frutos que antes eram permitidos e graciosamente ofertados nem à proteção automática dos anjos. E mais – mulheres parirão com dor e homens comerão o pão fabricado com o suor das suas frontes, além de outras bondades agnósticas paginadas no Velho Testamento.
Então, vamos trabalhar e vamos parir, voltando ao grande dilema – parir ou parar. Chega! Vamos dar um basta! Chega de gerar mais pessoas para chorar, chega de produzir mais suor para fazer o pão, se já falta a farinha, se já escasseia o trigo!
Os diabos não mudam, o inferno é que está ficando diferente.

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Faz-me falta a solidão, não o simples recolhimento ao nosso canto, mas a solidão completa, bucólica, ermitã. Quase retorno ao gabinete sanitário para lá ficar sentado e meditando o restante do dia; há dois dias eu me sentia muito mal, com o Etna em atividade no lugar da vesícula, mas pelo menos tinha paz, uma paz vazia, mas existente, uma paz sem diabos.     
Dante percebe a situação insustentável e se vai com Paganini e todos os maus espíritos, deixando em seu lugar leveza, cortinas esvoaçando e um silêncio sem violino. Ao ”allegro com fuoco” segue-se a “pastorale”, com as luzes apagadas e sombras nos cantos.

Livre, vou caminhar nas ruas com as duas mãos nos bolsos. Não faz frio, mas os dedos se enrolam e as mãos se fecham vigorosamente. A noite está tão pesada quanto o dia, o cianureto bate nas janelas fechadas e trancadas com cadeados negros cujas chaves negras foram jogadas dentro de um poço.

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