quinta-feira, 12 de outubro de 2017




IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO
1988

(Parte Seis)


Havia trechos nos poemas de Dante que eram bem interessantes, trágicos, mas interessantes, “madrugada de neve na Via Appia” – escrito assim, em português – e “Giovanna com os cabelos desgrenhados suicidando”, embora não diga a quem, o verbo assim em suspenso, um erro de gramática que se transforma numa joia da literatura universal, uma comunicação perfeita, Giovanna suicidando e alguém morrendo. O sapato me aperta o pé esquerdo e eu manco suavemente, dentro do ritmo, como uma barata a quem arrancaram uma perna.  
Na Suécia, a estas horas, haverá casais em desordem, lençóis amarrotados e um sol à meia-noite; no Oriente, canhões em fúria despejando toneladas de morte, destruição e selvagens em conflito.
Na minha cidade, as pessoas passam por mim como se eu fosse invisível, e eu sou mesmo, procurando sabem o que pensam, se é que pensam, provavelmente estão criando monstros terríveis nas suas mentes e cimentando um muro sem limites em torno de si, como um jazigo no infinito.
Monstros... Dante não falou sobre isso, nem escreveu sobre monstros nos seus infernos, pelo menos não esta espécie de monstro, apocalíptico, nascido dos maus pensamentos e alimentado por más intenções, pensamentos com fedor de enxofre a intenções com gosto de vermes, envolvendo todo o planeta com sua aura tinhosa.
É isso que sufoca e oprime, é isso que catalisa e cria pesadelos, é isso que açoita os fantasmas que arrastam suas correntes e produzem o som de um portal de um velho calabouço. É isso que pesa no mundo, que diminui a sua rotação e reduz a sua energia ígnea, como se um bicho enorme estivesse encarapitado na sua crosta.
Isso Gonzaga não lembrou de falar nas suas histórias sobre os problemas giratórios do universo, que a bola flutua num vazio sem fim, que se compacta e se materializa num grão de areia assim que nos distanciarmos trilhões e trilhões e trilhões de séculos-luz.         
Aí então seremos superiores a toda essa estupidez reinante, a toda essa mesquinhez reinante, a toda essa maldade reinante, e então teremos a sensação de que podemos tocar o globo azul com a ponta do dedo médio, ou até chutá-lo para o infinito, antes que ele se converta em uma só massa etérea. Aí então seremos extra-temporais, andaremos fora do espaço e discutiremos com Deus as razões para tanta incongruência.
Discutiremos as razões de tamanha alienação, tamanho preconceito, tantas bombas, a superpopulação, as crises nervosas e estomacais, as ostras estragadas, a morte dos gênios, a longevidade dos canalhas, os gases venenosos, os olhos fundos de Dante, os ouvidos moucos, meus ouvidos loucos e as queixas surdas e sem resposta.
Está tudo tão errado que parece que os errados somos nós, que não fabricamos o universo, e se não conseguirmos melhorar nada com a nossa costumeira e ineficaz cantilena, pelo menos sabemos da nossa covardia, como eu sei da minha; conheço Dante e seus complexos e, finalmente, sei que esta história do paraíso terrestre é uma grande bazófia e que esta noite sem graça vai acabar me transformando em um filósofo mesmo antes de me embriagar.
Na paisagem da cidade sobram a praça arborizada, o verde cinzento, luzes contrastantes, um velho cambaleando com o capote em frangalhos e o chapéu encardido. Patos dormindo no lago.
A morte está dia a dia mais próxima de cada um de nós, todos se dirigindo a uma estação terminal ou a um descarrilamento repentino, com o trem se lançando em disparada. Talvez ela tenha um encontro comigo marcado aqui mesmo, como em Samarra; talvez eu a veja na multidão e ela sorria para mim com a expressão estranha e dentes muito grandes e brancos, dizendo – “ainda não, ainda não é aqui nem hoje, não se preocupe...” – mas sempre por perto, sempre presente, sempre se fazendo lembrar. 
Tem sempre alguém chegando a alguém partindo, apesar dos desvelados cuidados, pois existem pílulas para nascer, pílulas para não nascer, pílulas para salvar e pílulas para matar, basta entrar na drogaria e escolher a droga a dedo, dentro de uma infinidade de nomes e marcas, “made in USA” ou “made in Taiwan” ou fabricada clandestinamente em qualquer bodega.
Uma lata de lixo azul está atada a um poste, uma banca de revistas possui uma imprópria iluminação própria, e um punhado de papéis amarrotados estão amontoados no meio-fio. Só temo abrir o jornal num dia destes e ler o meu nome na página de óbitos, a família agradecendo aos amigos e conhecidos e convidando a população para a missa de sétimo dia.
Para onde vou eu não sei, e talvez por isso vá; o que importa neste momento é fugir de Dante, agora que aparentemente o aparelho digestivo fez as pazes incondicionais com a paciência, agora que a noite se encheu de estrelas, que a lua aparece quase inteira e que a bruma avermelhada começa a tomar conta da cidade.
Incêndio não é, que não estamos em Pompéia, óxido de ferro também não, que não há siderúrgica alguma numa redondeza de mil quilômetros, radiações atômicas talvez, nos corroendo até o abstrato, que vamos morrer de qualquer forma, canonizados alguns, ionizados outros, a companhia de águas e esgotos deixou a rua cheia de trincheiras como se a guerra tivesse acabado de acabar, ou pior, como se estivesse para começar.
Relembro coxas, não sei por que, poderia ser flores ou nuvens, mas são coxas, o pensamento se afasta lubricamente para o longínquo e o corpo caminha como um autômato. Eu não sei para onde vou, mas vou do mesmo jeito.


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