quinta-feira, 26 de outubro de 2017





RETALHOS E REBOTALHOS

(Parte Seis)

Um mês, dois meses, três meses de espera e de planejamento, três meses ou mais criando fôlego e coragem como se eu fosse participar de uma competição na qual colocaria a minha vida em risco.
Um planejamento minucioso e exato, com um álibi mais que perfeito, as respostas todas engatilhadas para as perguntas que já devem estar programadas como num interrogatório de espionagem, o tempo sendo controlado como que por um regulador de explosivo, perito em destruição na hora certa, agora eu sei como se sentem os que premeditam matar, roubar ou mesmo vasculhar cofres e gavetas à procura do inexistente.
O cérebro trabalha intermitente como se fosse impulsionado por uma turbina, as imagens vão se sobrepondo, não fantasiadas como num caleidoscópio nem confusas como numa mente febril, mas lógicas, claras e ordenadas, pois a própria consciência se encarrega de eliminar os quadros indesejáveis ou aqueles que não se encaixam na ideia preconcebida, como se faz com uma peça errada num quebra-cabeça.
Para Felipe, o dono do bar, bastaria pedir uma noite de folga, sob o pretexto de qualquer desculpa tola, como todos fazem. Mas eu não posso fazer isso,  porque preciso estar aqui do lado de dentro quando chegar a hora, tenho que esperar para sair no momento certo, talvez alegando uma dor de cabeça repentina ou o aniversário de algum amigo depois da meia-noite.
Para Adelmo, o Dedé, chefe do conjunto que abrilhanta as noites da boate, basta um aceno depois de combinado. Ele e os outros músicos não vão se incomodar em fazer o restante da madrugada sozinhos, afinal o teclado sintetizador de sons pode fazer as vezes do saxofone também, embora nem um surdo pudesse acreditar nessa patranha, mas no fim tanto faz algum tempo de música com o saxofone ou sem o saxofone pois no geral a qualidade da música é ruim de qualquer jeito – agora mesmo estamos ensaiando um novo ritmo “made in Bahia” daqueles terríveis.
Para o respeitável público, uma vênia e uma saída sub-reptícia, pois tirando alguns que têm uma migalha de bom gosto, a maioria nem vai notar o que se passou.
Ainda outro dia apareceu um que pediu para eu tocar La Cumparsita com pizzicato e tudo o mais como fazem as rebecas e os bandoneons, vejam só que absurdo. Cumparsita com pizzicato no sax-alto – Charlie Parker deve ter estremecido na tumba – é a própria essência do desconhecimento da história e do bom senso, algum dia algum insano ainda vai me pedir para tocar o Hino Nacional de trás pra frente e ainda chamar Dedé para cantar.
Só resta então aguardar pela grande noite em meio ao ruído quente e abafado de boteco com cara de boate.
Crème de la Crème, vejam só que pretensão.

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De repente, a porta se abre e ela vem chegando, a dama das sextas-feiras, a musa esvoaçante com o perfil fino e misterioso, apagada como uma insignificância, resplandecente como uma gravura renascentista, solene como uma vela, bela como uma corbelha de hortênsias, pálida como um fantasma de Peter Cushing, vem como uma pluma carregada pelo vento, já murmurando “Round Midnight” sem mover os lábios, como Nica de Koeningswarten olhando apaixonadamente por Bird e Monk, com os braços esticados servindo de mortalha.

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Tão logo a minha deusa se desvaneceu pela porta afora como um fluído, eu arranquei o saxofone do pescoço e o coloquei no seu tripé de apoio. Fiz um gesto para Adelmo, que concordou com um assentimento de cabeça e parti às pressas em direção à saída trombando com os noctívagos que seguravam seus copos – um deles até resmungou quando eu meti o cotovelo no meio das suas costelas – cheguei à porta e disse para o porteiro encasacado – “volto já” – embora soubesse perfeitamente que poderia não voltar, nem nesta noite nem em outra qualquer, pois estava de partida para uma aventura sem rumo, o futuro incerto, as consequências imprevisíveis, assim como se vai para a guerra, com a certeza de que se um dia voltarmos será com o corpo avariado ou com a mente avariada depois de tantos choques e tantas coisas impressionantes para contar.
A musa fantasmagórica caminhava a uns cem metros na minha frente, ainda flutuando no seu vestido de gaze e eu comecei a segui-la sem me fazer notar, me esgueirando pelas reentrâncias das paredes, pelas portas cerradas das lojas comerciais e por detrás das árvores cujas folhagens balançavam ao sabor do vento que começava a ficar mais forte e mais frio.
Nem uma taturana seria tão rasteira e silenciosa. Enquanto ela parecia se mover sobre rodas como um ectoplasma, eu a seguia como um espírito vagando, ambos nos movendo como formigas na trilha, ela ainda resplendente como uma mancha alucinógena e eu alucinado como um touro em transe.
Passam as esquinas, os postes, as casas.
De vez em quando cruzo com algum passante que faz parte do cenário, como de resto também fazem parte da paisagem da madrugada que avança, das latas de lixo aplicadamente estacionadas nas portas das casas e alguns morcegos que teimam em voar seu voo cego bem rente à minha cabeça.  


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