quinta-feira, 26 de outubro de 2017




RETALHOS E REBOTALHOS

(Parte Sete – Final)

Quanto tempo estamos nesta caminhada? Dez minutos, dez horas, dez anos, o tempo é relativo e a única coisa nele que se manifesta é o tique-taque pulsante da minha artéria principal, com os batimentos se sucedendo como o ruído contínuo de uma bomba-relógio.
Ela se desvia dos obstáculos como eu dos morcegos, leve como flor de picão, e agora uma garoa fina começa a cair feito neve me fazendo sentir como um Gene Kelly saltando compassadamente para não perder a distância que nos separa.
Ouço ao longe o som de um trompete, igual àquele de Buddy Bolden que chegava a atravessar o Mississipi com uma clareza e uma força tamanhas que mais parecia a trombeta de Jericó. Tento identificar o tema – “West End Blues” – nada tão descabido como esta música neste momento, mais apropriado seria “Spellbound” e uma gargalhada de Bette Davis.
De repente chegamos a uma praça larga e arborizada, com uma banca de revistas pintada de cinza, bancos de cimentos, alamedas tortuosas que se cruzam aqui e ali dividindo canteiros com plantas baixas e algumas flores molhadas pelo chuvisco que já passou.
Na minha frente, como pano de fundo, uma decoração digna dos pesadelos de tia Jerusa, um cemitério de muro baixo, totalmente gradeado, as grades também pintadas com aquele cinza-prateado para fazer par com a banca de revistas e o enorme portão todo trabalhado se abrindo lentamente num ranger de gonzos. Ela, a minha musa, dá um último adeus para o lado de fora acenando para mim e entra lentamente no meio dos ciprestes, o portão se fechando com mais rangidos e o ruído de uma corrente se enroscando nas grades fazendo as vezes de uma última pá de cal. Depois, o silêncio sepulcral e absoluto, restando em cena apenas eu, meu cabelo arrepiado e embranquecido pelos borrifos da garoa e o coração tentando voltar ao compasso normal sem sair da boca.

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Ana é uma garota muito meiga, um pouco tímida, e possui alta sensibilidade artística. Gosta de pintar suaves aquarelas, de ler os clássicos franceses e de ouvir jazz.
Tem especial preferência pelas músicas da época do bebop, embora não necessariamente pelo bebop, e quando se espicha na poltrona da sala ouve baixinho Lover Man, My Funny Valentine e em especial Round Midnight.
Há alguns meses descobrira um lugar chamado Crème de la Crème que, a despeito da vulgaridade mundana, daquelas mulheres sem classe que nada tinham a ver com ela e daqueles homens mal-intencionados que mais de uma vez já lhe haviam feito propostas impróprias, abrigava um talentoso saxofonista que tocava o que ela gostava do jeito que ela gostava.
Ana não tinha certeza, mas acreditava que ele tocava somente para ela. Ele tocava olhando para ela, e a cada pressão dos seus dedos nas chaves douradas do instrumento causava em Ana um arrepio profundo, como se aquelas mãos lhe estivessem proporcionando uma massagem tonificante.
Esta noite ele abandonara tudo para segui-la, para acompanhá-la. Não chegou perto dela e Ana, dentro da sua discrição e timidez teve apenas a coragem de lhe dar um furtivo adeus.
Na próxima sexta-feira Ana irá falar com ele, explicar que é tudo tão difícil e que se sente envergonhada, intimidada, vulnerável e pequena.
Ana vai dizer a ele que não é fácil ser a filha do zelador do cemitério e ter que morar naquela solidão, no meio das almas.       

  


   

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