sexta-feira, 20 de outubro de 2017




RETALHOS E REBOTALHOS

(Parte Três)

Todos os dias é a mesma coisa, a mesma alternativa cruel.
O que mata não é a rotina, mas a chatice subliminar da rotina, principalmente quando a gente esbarra nos pilares do bom gosto, o que faz tudo desmoronar, esmagando a arte e o refinamento como um Sansão atormentado faria com um templo repleto de filisteus.
Soprando meu saxofone cor de ouro no ermo do meu apartamento eu me sinto iluminado. Passeio pelas frases construídas por Coltrane, copio a aspereza de Gordon, e outro dia me comovi na aventura inenarrável de  guinchar como um morcego no cio, de um jeito que talvez nem Ornette Coleman fizesse melhor.
Os vizinhos surpreendentemente concordam, ou pelo menos não vivem reclamando com o síndico nem com a ronda policial mais próxima.
Isto não tem partitura, nem academicismo.
Basta ouvir, deixar a música penetrar em cada poro, sentir as notas correndo pelas veias e suar o sangue da harmonia que foi absorvida pelo organismo como uma vitamina numa simbiose perfeita, eu e a música.
Quando saio do meu apartamento carregando o estojo negro junto com o meu próprio corpo, começa a alternativa cruel.
Eu me dirijo como um autômato para o mesmo “night-club” onde me aguardam um conjunto musical bem ensaiado – uma banda, como dizem os jornais – aquele garçom simpático e aquele outro carrancudo, e também o sócio-gerente daquele lugar que é mais chegado a “vaudeville” do que a “American bar”, para tocar os grandes sucessos da moda e fazer a alegria daqueles que jamais farão a nossa alegria.
Para ouvir estas músicas não é preciso sair de casa com o bolso recheado de cartões de crédito, enfrentar o trânsito cada dia mais confuso, brigar pela vaga do estacionamento e ter que dar gorjeta para aquele cuidador de carros que jamais irá cuidar de coisa alguma. Basta refestelar-se na poltrona da sala, desligar a televisão com as suas mesmices e ligar o rádio em qualquer estação de efe-eme, que dizem ser mais nobre.
Tocar, sim, mas tocar a música deles e tocar essa música pra eles é o que me enfara e me enfada.
Mas é dali que surgem os trocados que me permitem prosseguir na faina dos estudos – prática, composição, contraponto e regência – e pagar o absurdo do aluguel do apartamento para aquele judeu safardana que além de me descascar e espremer como a um limão tem o desplante e a desfaçatez de todo mês, no dia marcado para o acerto de contas do aluguel, fazer uma vistoria minuciosa nos meus aposentos para ver quantos pregos foram enfiados na parede, quantas lajotas de piso foram riscadas de preto pelo salto de borracha do meu sapato barato, quantas baratas se escondem por detrás do armário e por dentro do ralo do banheiro, quantos azulejos estão se soltando do reboco e quantas marcas de dedos foram deixadas na sala, naquela pintura duvidosa feita à base de cal hidratada.
Ele é o tipo do sujeito capaz de desenrolar todos os rolos de um fardo de papel higiênico só pra constatar se de fato cada rolo contém os quarenta metros mencionados na embalagem. Depois faz o cálculo do consumo mensal e distribui um pedaço para cada membro da família.          
Ainda outro dia ele se achegou num acesso de verborragia sócio-econômica acerca da nova lei do inquilinato, aquela que cada vez que é renovada permanece com os mesmos defeitos: “esta lei, senhorr Porfírrio, só favorrece o locatárrio, o senhorr entende que com essa pouquinha coisa que o senhorr paga não dá pra juntarr dinheirro pra reformarr o imóvel quando o senhorr forr embora!” – e eu pensando – “ou para o dia em que este velhaco bater as botas e tiver vontade de levar tudo consigo para além túmulo, dinheiro e apartamento, ações e debêntures e aquelas peças de ouro que estão depositadas no banco, velhote miserável!” – mas acabo apenas retrucando com um simples assentir de cabeça e um sorriso desbotado, vendo-o caminhar em direção ao elevador e depois sumir com o seu corpo mirrado e a cabeça calva, fazendo lembrar um cogumelo – “então até logo e muito obrigado!” (“muito obrigado?!”), e corro de volta para a sala para soprar o desabafo em um prolongado lá maior sem vibrato.


Nenhum comentário: