sábado, 11 de novembro de 2017






Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995,

SOLILÓQUIO

(Parte Um)

O que mais me aborrece em morrer é a primeira noite depois do enterro, é ter que dormir cercado de mortos que não conheço, sem uma companhia que me cutuque as costas pedindo para eu parar de roncar.
Na verdade, também me incomoda o fato de eu não mais roncar, coisa que se acontecesse iria colocar este campo santo em polvorosa e provocar, após o primeiro espanto, reportagens internacionais e pesquisas metacientíficas tão intensas que haveriam de se propagar desde o Titicaca até Catmandu.
Agora, apesar da vizinhança silenciosa e insípida, o que eu vou gostar de fato é da esperada escuridão e da ansiada tranquilidade dentro do meu silêncio, nada de ouvir portas batendo nem grilos cricrilando, nada de chuva tamborilando sobre a terra semi-revolta nem o prolongado pio da coruja, nada poderá incomodar o meu sono profundo aqui nesta caixa almofadada de primeira categoria qual leito acetinado de um grande hotel cinco estrelas, fruto da contribuição dos amigos, dada a exiguidade de fundos dos meus bolsos sem fundo por ocasião do passamento, que no máximo dariam para eu me acomodar em um caixote de bacalhau, fosse a escolha feita a moto próprio.
Me aborrece também ter que ficar calado à vista de tanta insanidade, agora parece que eu vejo melhor os falsos sorrisos e as intenções dúbias, se eu ficasse do lado de fora, entre eles, talvez também estivesse falando mal de mim com um sorriso de escárnio estampado na face hipócrita. Mas como todo bônus tem seu ônus, a eternidade também espera pacientemente por todos vocês para o acerto final de contas, embora o Dia do Juízo sejam todos os dias, é só se esvair o tônus vital e vocês também acabam num buraco, assim como eu.
Pensando bem ser enterrado assim tem mais graça do que ser simplesmente cremado como um pão que o padeiro esqueceu dentro do forno e depois ter as cinzas atiradas ao mar como restos de um churrasco de verão ou no Ganges, como um asceta.
Enterrado assim se tem mais dignidade e a gente pode usar finalmente o terno grosso de lã apesar do calor, tendo ainda de quebra a plateia que nos cerca qual uma alcateia faminta para ter a certeza de que realmente partimos desta para melhor, ou para pior, e que nunca mais voltará a nos ver (embora esteja escrito que nos veremos todos de novo muito antes do que pensam os ímpios e os céticos senhores).
E este público assim desordenadamente reunido entre sussurros ajuda a criar um cenário de pompa e glória, pois afinal este é ou não é um grande dia, um dia simplesmente inesquecível?
Na verdade, se nada me incomoda do lado de dentro, imóvel como um objeto e apertado como embutido de salsicha, descansando no conforto do revestimento da almofada roxa de veludo e cetim e a tampa de madeira de lei roçando a ponta do meu nariz, é porque estou também aqui do lado de fora, encantado e divertido com tantas lágrimas, tantos sorrisos, tanto desespero, tanto enfado, tanto dever cumprido e tantas maldições lançadas.
Os advogados agora me chamam de “de cujus”, os amigos distantes de “o falecido”, os credores de “que desgraça!”, o coveiro de “pobre coitado” e os herdeiros de “graças a Deus”, mesmo não havendo um prego torto para herdar ou talvez exatamente por isso.
A viúva, a quem os advogados chamam de “supérstite” resolveu não comparecer ao féretro pretextando um cansaço insuspeito e uma dor de cabeça suspeita, e afinal não terá que encarar ao vivo a choração das carpideiras nem suportar os olhares de misericórdia dos fariseus de farrancho.
Passada a comoção do préstito, todos os interessados hão de encontrar um intérprete para decifrar meu testamento cheio de dívidas e sem dividendos.
Flutuo como um fantasma por entre vasos de concreto rústico e suas flores emurchecidas, por detrás das pedras tumulares recobertas de musgo e limo, por sobre as cabeças da canalha que finge sobriedade e por dentro dos curiosos que se acotovelam, todos esticando o pescoço como galinhas ciscando para ver o esquife baixar à sepultura atado por dois pedaços de corda e manuseado por dois desnutridos sepultureiros que tratam a embalagem como se fosse uma caixa de cebolas, ora a cabeça batendo contra o lado de cima, ora os pés se achatando contra o lado de baixo, amarfanhando o terno grosso de lá azul-marinho que já frequentara muitos enterros de terceiros e que afinal tantas vezes vai à fonte que desta vez fica, deslocando o nó da gravata para o lado esquerdo como o faria um bêbado, somente as mãos permanecem pousadas uma por sobre a outra provavelmente por falta do que fazer e do que coçar nesta eterna – e ponha eterna nisso – insensibilidade.

Flutuo como um fantasma porque sou um fantasma, vagando ao sol das onze, e fantasma vagando ao sol não arrepia nem amedronta, é transparente como o vácuo, não faz sombra nem ruído, não tira partido do ultrapassado recurso do arrastar de correntes e não causa qualquer espécie de constrangimento.

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