quinta-feira, 16 de novembro de 2017






Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.

SOLILÓQUIO

(Parte Quatro e Final)

Tão zelosa tempos atrás, minha mãe já não se importa que gatos mexam e remexam nos nossos seus guardados, nos nossos guardados, nem os ratos, nem os abutres que reviram as gavetas como a um animal putrefato, nosso santuário, minha intimidade.
Mas afinal, o que pretendem os meus detratores? Violentar a minha imagem, já não tão nítida como era ontem, e antes de ontem, excrementar no meu túmulo, apagar os traços da minha memória, apoquentar o juízo dilacerado da minha mãe, meu pai, meu gato, ou simplesmente bisbilhotar sob o pretexto de que da ordem se faz o progresso, se não muito ético, pelo menos patriótico?
Poucos hão de se lembrar dos fios de cabelos brancos que brotavam do alto da minha orelha, fios desafiadores embora desafinados com o negror das sobrancelhas, poucos irão se lembrar da falha do meu dente incisivo e do pequeno sinal entre os olhos, mas todos irão se lembrar, relembrar e comentar as minhas falhas e os meus defeitos, as minhas faltas e os meus preconceitos, os meus insucessos.
Tento comentar estas vilanias com meus novos vizinhos, mas parece que eles pouco se incomodam, vai ver que com o passar do tempo eu também ficarei assim indiferente, assim diferente. Olho para o horizonte e o máximo que consigo ver é o vazio tisnado de negro, agora que a noite se abate novamente sobre a minha cidade silenciosa, e o máximo que consigo depreender dos meus companheiros é um total descaso pelas coisas vãs do mundo dos lobos, do mundo dos gatos.
Sinto-me leve como nunca me senti e respiro o ar da tranquilidade, muito embora repouse a carcaça nauseabunda num buraco sem conforto, minha atual propriedade, assim como foram minha propriedade todas as cadeiras nas quais eu sentei, isto enquanto sentado, todos os livros que eu li, mesmo sendo emprestados, e todos os cinemas e teatros que eu frequentei, pois enquanto eu lá estava aquilo era realmente meu, assim como sempre foi realmente meu este mundo sem o qual ou com o qual eu não faço absolutamente nada, por uma questão de coerência.
Recordo novamente a minha última solenidade, igual a tantas que já aconteceram e a tantas que deverei por força assistir por conta de habitar no natural cenário, e entendo que de nada vale participar do crime para amealhar fortunas, nem espionar a vida alheia e comentar seus desvios e desvarios, se a verdade absoluta se resume e uma chama que se apaga e a uma luz que se acende, dessas que ninguém vê mas que norteia os nossos passos feito um farol.
Penso ver um anjo, mas é só um pombo, penso ver um gato, mas é uma ratazana de cemitério.
O primeiro intruso se aproxima na manhã enevoada, cruza o portão em direção ao lado de dentro e eu então me recolho para dentro do conhecido.
Requiescant in pace.

  



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