segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018






EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE EM ÉPOCA DE PROVAS

(Conto publicado em 1988 no livro “Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em 1967)

(Parte 4)

Há quantos dias estou aqui, há quantos meses, há quantos séculos? Já nem sei, o relógio vive girando seus braços e eu não quero nem olhar para ele, o sol vai e vem e o máximo que eu faço agora é ir às provas e descobrir a hora do almoço ou da privada.
Ah, aquele hotel-pensão! O dono nos tratava como se nos pagasse em vez de nos explorar; a camareiras bonitas cederam lugar para as feias e estas para as velhas feias, aquilo não é hotel, é asilo, e nós, os hóspedes parecíamos atrapalhar, parecíamos interferir naquele mundo escuro, o quarto escuro, a sala de refeições escura, o banheiro escuro, o vaso tarjado de luto.
Melhor fez o meu tio por parte de avô, que trabalhava como fiscal sanitário ao invés de ficar quebrando a cabeça com tratados e dicionários, pois além de pespegar aos moradores do seu distrito multas condizentes com o mau esgoto, ele chegava nas residências de manhãzinha, com a bandeira amarela debaixo do braço da farda amarela, a ponto de tirar da cama homens e mulheres com roupa de dormir, as mulheres com os olhos fechados e os roupões abertos, e assim o tio-avô teve grandes noções de anatomia.
Estivesse ele aqui presente enfiaria a multa na cara do gerente, ou no mínimo enfiaria a cara do gerente na latrina mal aturável para mostrar a ele o que ele nunca quis ver.
À noite, caminho pelos bares e por casas escusas, as pequenas lâmpadas vermelhas e as poltronas ramadas, uma ou outra se diferenciando através de cartazes – “casa de família” – e por essa todos passavam sem sequer tocar no portão, como um sacrário.
Depois, a volta ao hotel, os pernilongos, os sonhos, as mulheres gargalhando, o calor, o professor detrás dos óculos, o guarda-roupa negro crescendo na minha frente como se estivesse caindo, as sombras se dispondo e interpondo dentro do quarto, um guarda apitando na rua.
-0-
No outro dia a vida continua a mesma, mas na outra noite teremos a festa de despedida do período no centro acadêmico. É o último dia – até que enfim! – então subi nas árvores da praça para dependurar faixas convidando a camarilha da escola para a pândega; eram risos e brincadeiras e eu me divertia na copa das árvores bem em frente ao vetusto prédio da escola enquanto lia nas entrelinhas o real significado dos seus dizeres – “Cachorros, covardes, vendidos, façam alguma coisa para mudar essa vida, vocês são acomodados como parasitas! O mundo todo é esta cidade provinciana e quem tentar mudar esta chatice vai ser chacinado como um inseto! Coragem, vermes, coragem!”.
As faixas valeram: a calçada em frente ao centro está repleta de estudantes.
As escadas conduzem a gente para o alto, a música está alta demais, mas a mim não incomoda nem um pouco, me interessam mais as garotas subindo os degraus, é só acompanhar com o olhar para o alto que ouviremos cantar os anjos, se o céu for assim eu me converto imediatamente, me sujeito a todos os rituais necessários, beijo o anel do prelado e a correia do capelão, se precisar até tomo banho de incenso.
Mas isto não é festa de estudante que se preze, de estudante desta época, é uma vergonha ser realizada num centro acadêmico, só faltam o tio-avô, o gerente do hotel-pensão e o professor de olhar espichado, o que temos é pouca atitude para completar este quadro de estupidez e esta falta de tino. Estudantes que falam de tudo o que não vale nada e nada do que realmente vale tudo, falta aquela decisão que a gente toma quando se torna homem, aquela ficha que a gente joga como o grande lance das nossas vidas.
Um estudante deve ser aquele que anda com um livro de um lado e uma ideia do outro, se livro e ideia se fundirem tanto melhor, mas o que importa mesmo é modificar estruturas sociais arcaicas, e não as notas das provas. 
O imperador também foi jovem, mas foi um jovem à moda dele, pois não precisava pensar deste jeito, afinal, era o imperador. Não tinha que aturar os impostos, a polícia, o trem nem o hotel, e inaugurava praças e mulheres à vontade, sendo que as praças ainda permanecem intactas e até hoje conservam a sua placa.
O tio-avô também foi jovem, mas depois que ficou mais velho vivia metido na intimidade matinal dos lares e seu universo não passava de uma privada usada durante a noite. Mas ele não farejava a podridão da vida e a bandeira que empunhava não era a da libertação. Talvez fosse, mas a dos micróbios.

SEGUE   


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