sábado, 3 de março de 2018






O FANTASMA DA FM

(Conto publicado em 1992 no livro “O Fantasma da FM”)

(Parte 1)

Todas as madrugadas ele aparece no jardim da emissora, vindo do nada, trazido pelo vento, e passa por entre as plantas cuidadosamente espalhadas pelos canteiros que estremecem à sua aproximação, na aragem fria e úmida das duas horas.
Ele segue em direção à sala da recepção protegida por uma imensa parede de vidro temperado e por um par de portas também de vidro, que ele atravessa sem tocar, passa pelo porteiro semiadormecido que fita a tela da televisão com os olhos fechados, vaga pelo corredor deserto, sobe as escadas geladas por força do ar condicionado e vai espiar Adalgisa pelo vidro retangular no alto da porta do estúdio.
O telefone toca seu ruído estridente no silêncio da recepção e o porteiro enfim acorda, com a sensação desagradável de que por ele passou alguém, tendo a incômoda impressão de que estivera dormitando num banco duro de velório, pois as vozes saídas da televisão pareciam com os sussurros daqueles que velam um morto no meio da noite, até que aparece um anúncio berrante e fora de hora de uma loja de eletrodomésticos para acordá-lo deste sonho estranho.  
Ele olha para as portas fechadas à sua frente e às suas costas e vê através do vidro as plantas se movendo do lado de fora como se fosse um teatro de silhuetas, qual vultos de braços compridos e pescoços esticados como demônios negros se aproximando, e um ligeiro tremor na dobradiça da porta faz balançar toda a lâmina de cristal que lhe serve como proteção enquanto a imagem da sala refletida também sofre um leve estremecimento, assim como a sua própria imagem, ao mesmo tempo em que o telefone continua a gritar.
Aristides é um porteiro noturno já acostumado com os incômodos da madrugada, o cabelo negro eriçado emoldurando os olhos pequenos agora ainda menores com o sono, e o bigode mal aparado se apoiando no beiço superior, um verdadeiro receptáculo de espuma de cerveja ou de coriza mal assoada.
Ele já devia estar acostumado com essas noites mal acomodadas, a televisão ligada até a tela começar a chuviscar e fazer “bzzzzz”, as plantas se movimentando no jardim e o telefone alfinetando o sistema nervoso, mas cada plantão parecia ser o primeiro, com as mesmas más impressões e os mesmos devaneios fúnebres.
Até que enfim ele atende o telefone, muito a contragosto, e se depara novamente com aquela voz de criança que deseja falar com a locutora lá em cima como o faz habitualmente apesar do adiantado da hora, o que serve para irritar ainda mais o combalido Aristides e para livrar Adalgisa dos seus fantasmas.
Ou então é aquela voz pausada e grave que sempre pergunta as horas como se estivesse contando a sua contagem regressiva em direção à foice inevitável. Essa voz nunca pede para falar com a locutora, o que não deixa de ser um alívio para a coitada, que assim não precisa de defrontar com aquela mensagem de além-túmulo e aquela voz de ventríloquo.
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Adalgisa está perdida lá em cima por entre capas de discos, listas de programação e cartuchos com vinhetas e mensagens comerciais, e vai cumprindo galhardamente com a sua missão noturna, agradecida pelo telefonema do garoto que veio lhe fazer companhia com a sua reconfortante e jovial presença e tingir a madrugada de cor-de-rosa até às seis da manhã, quando o alvorecer irá trazer Ronaldo, o locutor que vem lhe substituir abrindo a programação do dia injetando otimismo e bem-estar aos ouvintes que começam a se espreguiçar para sair da cama tateando em busca dos óculos sobre o criado-mudo e partir para o ensaboamento e o banho, para a sagrada mijada matinal e para os cuidados que nos transformam em atores cotidiano.
Ainda é fim de madrugada e no estúdio as luzes permanecem baixas como numa catedral vazia e a programação segue quente – Pink Floyd, Genesis, Led Zeppelin – na voz de veludo e na beleza dos vinte anos de Adalgisa com a sua moreneza de olhos brilhantes e amenos e som seu sorriso matreiro, enquanto olhos invisíveis a fitam, em êxtase.
De vez em quando ela tem um leve tremor e vira o pescoço para trás na esperança de não ver aquilo que não quer ver, alguma coisa espreitando pelo retângulo do vidro, a porta se abrindo lentamente e a coisa avançando em silêncio, seu grito mudo de socorro alcançado apenas pelos ouvidos surdos de John Lennon que sentencia “got to be good looking ‘cause he’s so hard to see...”, as luzes se apagando, Lennon emudecendo e aqueles olhos rubros e incandescentes brilhando obscenamente no escuro e se aproximando, bem como o arfar de uma respiração ofegante.
Ela sacode a cabeça, espanta o pesadelo e se concentra novamente no microfone, o painel agora aceso “no ar” e a voz de veludo transmitindo romance e encantamento ao som de Coleman Hawkins soprando bonito “Body and Soul”.
Chegando a manhã, Adalgisa se vai com um sorriso e um “bom dia!” para o companheiro que chega e Ronaldo se chega com um sorriso e um “bom dia!” para a colega que vai, enquanto o fantasma se desvanece no ar.

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SEGUE


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