sábado, 31 de março de 2018






COMO NASCEM AS CANÇÕES

(Parte 2)

(Artigo escrito para a página da Academia Poética Brasileira – https//www.facebook/com/academiapoetica/. Este site é uma publicação da Academia Poética Brasileira, da qual sou membro)


Igualmente antológica foi a briga musical entre Noel Rosa e Wilson Batista, que se arrastou por cerca de cinco anos desde o início da década de 1930. Tudo começou quando Batista se desentendeu com Noel e compôs um samba que física ou moralmente ameaçava o desafeto.
A música que iniciou a querela se chama “Lenço No Pescoço” (“Meu chapéu de lado, tamanco arrastado / Lenço no pescoço, navalha no bolso / Eu passo gingando, provoco e desafio / Eu tenho orgulho em ser tão vadio ... / ...Eu sou vadio porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança, tirava samba-canção / Comigo não / Quero ver quem tem razão”).
Noel não gostou do recado e, encorajado pelo amigo e também compositor Orestes Barbosa, resolveu responder. A resposta veio com “Rapaz Folgado” (“Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora essa navalha / Que te atrapalha... / ... Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar todo o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado”).
Alguns meses se passaram até que Wilson Batista desse a sua resposta, com “Mocinho Da Vila” (“Você, que é mocinho da Vila / Fala muito em violão, barracão, e outros fricotes mais / Se não quiser perder o nome / Cuide do seu microfone / E deixe quem é malandro em paz / Injusto é o seu comentário / Falar de malandro quem é otário / Mas malandro não se faz / Eu, de lenço no pescoço, desacato / E também tenho o meu cartaz”).
Noel então compôs “Feitiço Da Vila” (“Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraçar o samba / Que faz dançar os galhos do arvoredo / E faz a lua nascer mais cedo”). O samba, que ficou conhecido pela sua poesia e pelo seu bom mocismo, não atacava diretamente o seu oponente, pois a princípio ele foi composto para elogiar Vila Isabel, bairro carioca onde ele, Noel, tinha nascido e sempre morou. No entanto, há no final da música uns versos não muito conhecidos nos quais Noel joga um pouco de pimenta no assunto (“Quem nasce pra sambar / Chora pra mamar / em ritmo de samba / Lá não tem cadeado no portão / Porque na Vila não tem ladrão”).
Wilson respondeu com “Conversa Fiada” (“É conversa fiada dizerem / Que o samba da Vila tem feitiço / Eu fui ver pra crer e não vi nada disso / A Vila é tranquila, porém eu vos digo – cuidado! / Antes de irem dormir deem duas voltas no cadeado”), para o qual Noel contra-atacou com “Palpite Infeliz” (“Quem é você, que não sabe o que diz? / Meu Deus do céu, que palpite infeliz / Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira / Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila não quer abafar ninguém / Só quer mostrar que faz samba também... / ...Eu já chamei você pra ver / Você não viu porque não quis / Quem é você, que não sabe o que diz?... /... “Quem é você, que não sabe / aonde tem o seu nariz? / “Quem é você, que não sabe o que diz?”).
Wilson Batista perdeu a compostura e compôs “Frankenstein Da Vila” fazendo alusão a uma deformidade que Noel possuía no queixo (“Boa impressão nunca se tem / Quando se encontra com alguém / Que até parece o Frankenstein / Mas como diz o refrão / Por uma cara feia perde-se um bom coração... /... Entre os feios estás na primeira fila / Eu te batizo Fantasma da Vila / Esta indireta é contigo / E depois não vá dizer / Que eu não sei o que digo / Sou teu amigo”).
Noel ficou evidentemente chocado com tamanha descortesia, mas não respondeu.
Certo dia ambos se encontraram em um café no centro da cidade e Wilson Batista apresentou a Noel uma nova composição que voltava a explorar a velha polêmica. A música se chamava “Terra De Cego” (“Perde a mania de bamba / Todos sabem qual é / O teu diploma no samba / És o abafa da Vila, bem sei / Mas na terra de cego / Quem tem um olho é rei / Pra não terminar a discussão / Não deves apelar / Para um barulho na mão / Em versos podes bem desabafar / Pois não fica bonito um bacharel brigar”). Noel de pronto reescreveu a letra e mudou o título para “Deixa De Ser Convencida” (“Deixa de ser convencida / Todos sabem qual é / Teu velho modo de vida / És uma perfeita artista, eu bem sei / Também fui do trapézio / Até salto mortal no arame eu já dei / E no picadeiro desta vida / Serei o domador / Serás a fera abatida / Conheço muito bem acrobacia, por isso não faço fé / Em amor, em amor de parceria / Muita medalha eu ganhei”). Depois disso, nunca mais se viram. Noel, que já estava doente, morreu pouco depois, em 1937.
Com a morte de Noel, Wilson Batista se mostrou arrependido pelos seus versos deselegantes, e mais tarde compôs em parceria com Waldemar Gomes um samba no qual exaltava o rival; a música se chama “Quero Um Samba” (“Diga para o dono do baile / Que nós queremos sambar / A noite inteira sem tocar um samba / Nem parece que estamos no Rio / A terra de Sinhô e o berço de Noel”), e depois um outro, chamado “Terra Boa”, feito em parceria com Ataulfo Alves, no qual elogia alguns brasileiros famosos (“Terra de Santos Dumont / Carlos Gomes, Ruy Barbosa / Grande Duque de Caxias / Castro Alves, Noel Rosa”).
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Vale a pena também rever os registros de uma interessante a sequência de músicas de Ataulfo Alves nascidas em virtude do romance que a cantora Carmen Costa (por quem Ataulfo era apaixonado) mantinha com um compositor obscuro chamado Mirabeau Pinheiro.
As deliciosas provocações nunca passaram das noitadas de violão, embora chegassem a ser gravadas, inclusive pelos próprios Ataulfo e Carmem, num mesmo disco.
Entre as músicas, algumas preciosidades de Ataulfo como “Pois É”, onde ele ironiza uma briga de Mirabeau e Carmen (“Pois é, falaram tanto / Que desta vez a morena foi embora / Disseram que ela era a maioral / E eu é que não soube aproveitar / Endeusaram a morena tanto, tanto / Que ela resolveu me abandonar...”), respondida pela própria cantora com “A Morena Sou Eu”, de Mirabeau e Milton de Oliveira (“Aqui você rirá dizendo a todos / Pois é, pois é, pois é / Quem sabe a quentura da panela / É a colher, é a colher / Chega o que ela já sofreu / Quem de vocês já conhece / Que a morena sou eu...”), que foi respondido magistralmente por Ataulfo com “Sai Do Meu Caminho” (“Eu nada lhe perguntei / Não há razão pra você me responder / A carapuça na cabeça não lhe cabe / Meu caso é outro / Eu bem sei que você sabe / Sai do meu caminho / Não estrague os dias meus / Deixe-me em paz pelo amor do Santo Deus / Pois a morena que eu falava na minha canção / É diferente da sua insinuação”).
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As canções também podem nascer a partir de homenagens prestadas a músicos que partiram e fizeram falta, abrindo uma lacuna irreparável sentida por ouvintes, amigos e admiradores.                
Quando Francisco Alves morreu em 1952 num acidente automobilístico na Via Dutra, rodovia que liga Rio a São Paulo, houve uma comoção nacional. O cantor, verdadeiro ídolo da música popular brasileira estava no auge da fama, e acabou sendo objeto de inúmeras homenagens, como a prestada por Nássara e Wilson Batista com o samba “Chico Viola” (“Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira / todo o Brasil emudeceu / chora o mundo inteiro / o Chico Viola morreu...”). Na segunda parte da música, Wilson Batista relembrou seu antigo desafeto Noel Rosa, quando coloca Francisco Alves no mesmo patamar dele (“Na voz do seu plangente violão / ele deixou seu coração / partiu, disse adeus, foi pro céu / foi fazer, foi fazer / companhia pro Noel”).
O mesmo Noel também recebeu um tributo através do samba-canção “Escuta Noel” composto e interpretado por Maysa em 1957 (“Onde estás, Noel, que não escutas / Os plágios das tuas músicas / Que se ouvem por aí / Frequentaste tanto tempo academia de melodia / O samba não se faz por amizade ou simpatia /  O samba agora criou outro estilo / Sambista só sabe sambar pra granfino / E a favela agora é ponto de turista, de soçaite, de artista / A poesia acabou / Vem Noel, vem fazer a serenata / Tua música faz falta e ninguém nunca igualou”).

SEGUE

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