domingo, 25 de março de 2018




UM PIANO NO FIM DA TARDE

José Eduardo Coutinho Maia era meu conhecido de infância. Éramos vizinhos, embora não necessariamente amigos, pois não mantínhamos maiores contatos nessa época. Seus pais lhe impunham uma educação excessivamente vitoriana e proibiam a ele e a seu irmão de saírem à rua para brincar e se enturmar com os garotos vizinhos. A própria família, classe média alta, não se entrosava muito com a vizinhança.
A condição financeira da família de Eduardo parecia muito estável, pois eles se davam ao luxo de ter uma governanta exclusiva para as crianças e um Chevrolet “do ano” que era obrigado a estacionar na rua, pois a casa, embora grande, não tinha garage, fato mais ou menos comum a boa parte das casas do bairro na época.
Na verdade, Eduardo e eu começamos a trocar ideias apenas depois da nossa maioridade, quando ele conseguiu afinal a alforria do velho Nazir – seu pai – muitas vezes ao lado de uma boa caneca de chope numa churrascaria chamada Forte Apache ou num bar chamado A Gloriosa, que era o point da moçada de então.
Eduardo gostava de cinema e fotografia, e eu já naquela época me interessava por escrever. Este foi o principal motivo da nossa aproximação, e as nossas conversas geralmente versavam sobre a tal da “ideia na cabeça e uma câmera na mão” decupada por Glauber Rocha, o realismo italiano, e a invasão da nouvelle vague e do cinema novo. Discutíamos de Eisenstein a Griffith e de Chaplin a Orson Welles, e eu cheguei a comprar livros sobre técnicas de direção e edição para melhor entender o assunto.
Daí nasceu a feliz ideia de fazermos um filme – chegamos de fato a fazer vários filmetes, que se perderam no tempo – onde Eduardo cuidaria da parte cinematográfica e eu ficaria com o roteiro e a parte cênica.
Um dos filmes, rodado no velho sistema dezesseis milímetros, foi chamado “A Busca e A Fuga”, baseado num conto-crônica que eu havia escrito alguns anos antes, e era uma alegoria sobre a situação incômoda de um cidadão que não conseguia se ajustar à sociedade em que vivia.
O tema podia ser pretensioso, mas o filme, mesmo modesto, chegou a participar de alguns festivais de cinema amador, onde foi objeto de elogios precipitados dos amigos, de aplausos benfazejos dos entusiastas e de comentários desairosos dos críticos mais acerbados.
Como cenário para uma determinada parte da filmagem, nós escolhemos o pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera, que havia sido inaugurado em São Paulo em 1954 e estava vazio naquela ocasião, recebendo merecidos reparos naquele ano de 1967.
Suas características arquitetônicas com vãos livres enormes sem paredes internas, nascidos da concepção modernista de Oscar Niemayer, e o descortino de um horizonte arborizado naquele fim de tarde dariam a medida exata do que precisávamos em termos de enquadramento para provocar a sensação de solidão e fuga.
Tudo, é claro, em preto e branco, por ser mais barato e mais cult.
Para lá nos dirigimos, eu com os meus projetos, Eduardo com seu equipamento, Sergio Martire – encarregado da fotografia – com seus medidores de intensidade de luz e seus conhecimentos técnicos, Élio Lammardo, uma espécie de assistente geral com seu entusiasmo e incentivo, e o nosso ator Luiz Carlos Gertel, um sujeito com cara de galã que era repórter da Radio Bandeirantes.
Subimos para o vão aberto do segundo andar e começamos a caminhar pelo piso deserto procurando o ponto mais conveniente para que Luiz Carlos começasse a atuar. A vastidão e o silêncio do cenário ajudavam a criar o clima Felliniano que desejávamos.
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No meio de tanta brancura avistamos como que surgindo do nada um piano negro com a asa aberta, que crescia dentro do cenário emitindo acordes jazzísticos formidáveis. O som e a imagem que chegavam até nós, ao invés de quebrar o encantamento da cena, trazia uma aura de imponderabilidade, como se todo o ambiente tivesse de repente começado a flutuar.
Caminhei em direção ao piano, com o som do jazz agora ocupando todo o espaço, e num instante reconheci “How About You?” (Burton Lane e Ralph Freed), e por trás do instrumento ninguém menos do que Dick Farney, que também estava ali para uma gravação e naquele instante aquecia os dedos – conforme ele nos confidenciou.
Dick recebeu nossa intromissão com um semblante sorridente e a expressão levemente enigmática, uma extensão dos seus shows de jazz aos quais eu me habituara a assistir em algumas noites de quarta-feira no auditório de A Folha de São Paulo na Rua Barão de Limeira ou em alguma boate da região central da cidade.
A sua presença solitária naquela hora e naquele lugar parecia estranhamente etérea e conveniente.
Farney não perguntou o que fazíamos no seu território – a parafernália que trazíamos em mãos acho que era mais que suficiente para qualquer bom entendedor – mas isto não nos intimidou e logo travamos uma rápida conversa com ele.
Afinal, estávamos frente a frente com um dos músicos que ajudaram a escrever a história da música brasileira nos Estados Unidos e que fazia parte de uma revolução de ideias que culminaram com o advento da bossa nova dez anos antes, usando como recurso apenas a sua voz e seu piano, como se isso fosse pouco.
Além de “How About You” Farney gravara standards famosos como “She’s Funny That Way” (Richard A.Whiting e Neil Moret), “These Foolish Things” (Jack Strachey, Holt Marvell e Harry Link), “What’s New?” (Johnny Burke e Bob Haggard) e “You Go To My Head” (J.Fred Coots e Haven Gillespie). A gravação de Farney feita nos Estados Unidos em 1947 para a música “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) havia sido feita em primeira mão, antes mesmo das versões de Sinatra e Nat “King”Cole.  
Tudo isto sem prejuízo da discografia nacional do final da década de 1940 e de toda a década de 1950, com gravações que serviram de base histórica para o surgimento da bossa nova – “Perdido De Amor” (Luiz Bonfá), “Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Nick Bar” (Garoto e José Vasconcelos), “Você Se Lembra” (Haroldo Eiras e Victor Berbara), “A Saudade Mata A Gente” (Antônio Almeida e João de Barro), “Um Cantinho E Você” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Se O Tempo Entendesse” (Marino Pinto e Mario Rossi), “Somos Dois” (Armando Cavalcanti, Luiz Antônio e Klécius Caldas), “Ponto Final” (Alberto Ribeiro e José Maria de Abreu), “Outra Vez” (Antônio Carlos Jobim) e outras tantas maravilhas.
Dick Farney sempre se interessou pelo jazz e pelos clássicos americanos, tanto na voz quanto tocando piano, e seu debut na Radio Cruzeiro do Sul foi cantando a mais improvável das musicas – “Deep Purple” (Peter DeRose e Mitchell Parish), na época em que os cantores amadores se especializavam em Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e Assis Valente.
Ele apareceu na música brasileira no local e na hora certa – Rio de Janeiro, num momento em que a juventude carioca frequentava a Lojas Murray em busca do que havia de mais moderno em discos de jazz e standards – e provocou inclusive a criação do primeiro fã-clube de que se tem notícia no Brasil, o Sinatra-Farney Fan Club), que infelizmente durou apenas um ano.
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A nossa filmagem se deu mais tarde, em um ponto distante de onde estava Dick Farney, pois não pude deixar de me quedar estático durante um bom tempo me inebriando com o som daquele piano no fim da tarde.
E aquele som – “I like New York in June, how about you?... – acompanhou o nosso trabalho como uma benfazeja e inesperada trilha sonora.
Afinal, o filme era mudo, mas felizmente não era surdo...



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