domingo, 20 de janeiro de 2019





EU SOU SUA MÃE...
(excerto)

           No relativo silêncio do bar, localizado em uma travessa tranquila a três quarteirões da avenida principal, com o tráfego rigorosamente reservado aos moradores, uma voz estridente falava – um outro só ouvia e assentia – o que facilitou a minha audição. Não me senti indiscreto, afinal eu já estava lá antes de eles chegarem, e na falta do que fazer, prestei atenção no colóquio, na verdade um quase monólogo.
          O sujeito falante fazia comentários sobre alguém que logo percebi tratar-se de sua filha chamada Ana Clara, “que só tem dois anos, mas já é esperta e tagarela como quê!”
          O homem teceu longos elogios à beleza e inteligência da pequena, descendo a detalhes que só interessam aos pais, enquanto o outro apenas ouvia entre o desinteressado e o enfadado, e emitia uma ou outra interlocução.
           “Todos sempre dizem que minha filha é muito parecida com a avó – minha mãe. Eu, especialmente, sempre notei certos trejeitos muito particulares que fazem lembrar minha mãe, como inclinar o pescoço para o lado esquerdo quando se intrigava com alguma coisa, ou apertar a ponta do nariz quando estava contrariada.
          Minha mãe morreu há seis anos, mas eu continuo morando na mesma casa em que vivíamos, por ser um bem de família e eu ser um filho único. Eu ainda sinto a sua presença na sala, como se ela estivesse lá, no mesmo lugar, vendo televisão, ou mesmo à noite, diante da porta fechada do quarto onde ela dormia.
          Minha mulher diz que não acredita nessas coisas e que é para eu deixar de bobagem. Chegou a mudar os móveis de lugar e a transformar o quarto que minha mãe ocupava em dispensa e adega.
          Diz também que há muito exagero quando eu me refiro à sua semelhança com Clarinha. ‘Uma criança se parece com outra criança, não com uma velha de oitenta anos’, disse ela. Eu me senti indignado com a forma como ela se referia à minha mãe, mas assenti, mudo, para evitar maiores aborrecimentos.
          Outro dia Clarinha estava fazendo uma malcriação qualquer, dessas que os pais toleram com um riso amarelo e que os amigos sentem vontade de pespegar logo umas palmadas. Birra, dizem os psicólogos, manha, dizem os avós.
          Mas a malcriação começou a ficar insistente e eu comecei a perder a paciência. Afinal, eu havia tido uma educação que, se não foi demasiadamente severa, pelo menos foi muito firme, e essa educação não admitia discussões com meus pais sobre quem estava certo e quem estava errado.
          Assim, pela malcriação e pela tentativa de me vencer pelos gestos e pelos resmungos, eu comecei a repreendê-la, primeiro carinhosamente, como convém à repreensão a uma criança de dois anos e meio; depois, como a malcriação aumentava, procurei com mais empenho usar a razão, e finalmente apelei para a autoridade, talvez de uma forma equivocada e precoce, considerando a idade da menina.
          Eu falei para ela, de uma forma bastante incisiva, elevando o tom de voz e brandindo o dedo indicador – ‘minha filha, me respeite, porque eu sou o seu pai!’.
          Fez-se um pesado silêncio, e eu temi pela consequência da minha súbita explosão – um muxoxo magoado ou talvez um choro convulsivo.
          Ela, porém, permaneceu estática por um momento, depois olhou seriamente para mim, apertou a ponta do narizinho, pendeu o pescoço para o lado esquerdo e disse, com uma seriedade e um tom de voz que nada tinha de infantil:
          ‘...E eu sou a sua mãe!’.
          Calei, não ser ter sentido antes uma súbita onda de calor e frio a me subir pela espinha.
          Minha mulher a tudo observava, boquiaberta e com o olhar imóvel, encostada no batente da porta”.





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