quinta-feira, 20 de junho de 2019






SUBVERSIVOS
                     (excerto)

Joguei as cobertas no chão, apesar do frio que fazia, e me pus a andar de chinelos pelo quarto.
Eu estava acostumado a dormir de pijama, mas as circunstâncias da noite levaram o pijama pro beleléu. Ana Luíza, ainda deitada, refletia se todo o incêndio noturno fora suficiente para apagar da sua cabeça a imagem de um antigo namorado cujo semblante e cuja barba eram mencionados por ela a cada instante.
Ana Luíza trabalhava para um instituto de pesquisa de mercado e passava os dias nas ruas inquirindo homens e mulheres a respeito de tudo o que se possa imaginar em termos de usos e costumes.
“menta, eucalipto ou gengibre”?
“pizza, frango frito ou sanduíche natural?
“lavanda, colônia ou capim-limão”?
“máscara capilar, escova ou reparação total”?
“montanha, praia ou campo?”
Definitivamente um saco.
Minha preocupação no aconchego da alcova era que, estando a meu lado tentando esquecer o tal Pedro (este o nome do indivíduo barbudo), ela se pusesse a me fazer perguntas, mas felizmente isso não aconteceu. Senão, sabe-se lá que tipo de pergunta eu ouviria, se chegasse a ouvir...   
Os atos são sempre melhores que as palavras, disso eu tinha absoluta convicção, e utilizava esta filosofia sempre que possível – “boca chiusa ed al lavoro” – a frase espocava na minha cabeça sempre que eu fazia algo agradável.
Tudo começou há pouco tempo em uma investida (dela) numa praça no centro da cidade para a conveniente sessão de perguntas. Só que, no meio das perguntas, ela começou a falar do tal Pedro, ficou definitivamente amuada e me contou que descobrira amores furtivos entre e ele e uma amiga que trabalhava no circo – se descobrira é porque não eram tão furtivos assim – e ela supunha que ele tivesse partido assim de repente por algum problema de paternidade, não por culpa deles, como atesta a Encíclica, mas por alguma falha no dispositivo de segurança da pílula.  
E Pedro, com as barbas de molho, foi cantar em outra freguesia.
Isso tudo ela me disse aquele dia naquela praça, sentados num banco de madeira, com lágrimas nos olhos e tremendo de frio, pois era junho e o inverno estava inclemente...
Nossa conversa revelou intimidades, e logo comecei a me sentir um possível – e provável – protagonista de um desempate amoroso, apesar da minha cara ser mais lisa do que bola de bilhar, e o meu semblante... bem, deixa pra lá.

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Tirei os chinelos e entrei no chuveiro.
Ela já havia se levantado, e agora passeava de lá pra cá vestindo a minha camisa, diante da porta escancarada do banheiro, carregando livros, travesseiros e a pasta preta de trabalho cheia de questionários e tabulações. De vez em quando olhava para onde eu estava, de onde saia um vapor reconfortante do banho quente em exercício, mas estava com a expressão contrariada.
Era a primeira vez que não falava, não perguntava e não induzia, o que me fez pensar que o caso com o Pedro da barba deve ter sido realmente sério, ou pelo menos deixara marcas profundas no seu rosto abatido.
Ou teria sido a minha virilidade?...

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