quinta-feira, 17 de outubro de 2019






O FANTASMA DA FM  
(Excerto) 

Todas as madrugadas ele aparece no jardim, vindo do nada, trazido pelo vento, e passa por entre as plantas cuidadosamente espalhadas pelos canteiros que estremecem com a sua aproximação, na aragem fria e úmida das três horas.
Ele se dirige para a sala da recepção protegida por uma imensa parede de vidro e por um par de portas também de vidro que ele atravessa sem tocar, e passa pelo porteiro Aristides que, semiadormecido, fita a tela da televisão com os olhos fechados.
Ele vaga pelos corredores desertos, sobe as escadas geladas pela potência do ar condicionado e vai espiar Adalgisa pelo vidro retangular do alto da porta do estúdio.
Todas as madrugadas ele deixa em seu caminho sem matéria as plantas agitadas, o vidro estremecido, o porteiro cheio de cismas e as escadas desertas, enquanto roça na cortina que balança sem motivo e deixa entrar pela janela uma fresta de luar. Depois vasculha as salas vazias e os móveis imóveis à procura de Adalgisa, da voz de Adalgisa, do rosto de Adalgisa.
O telefone da recepção toca seu ruído estridente e o porteiro enfim acorda, com a sensação desagradável de que por ele passou alguém e com a incômoda impressão de estar dormitando no banco duro de um velório, as vozes vindas da televisão parecendo o sussurro daqueles que velam o morto.
Através do vidro temperado ele vê as plantas se movimentando num teatro de sombras como demônios negros se aproximando, e o vento faz tremer a dobradiça da porta e balança toda a lâmina cristalina, a imagem da sala refletida e o telefone gritando.
Aristides enfim atende o telefone, é novamente aquela voz de criança de além-túmulo pedindo pra falar com a locutora ou aquele homem de voz grave querendo saber as horas, como se estivesse premeditando um crime.
Um frio lhe corre pela espinha dorsal como o aço de um punhal e as pernas tremem, mesmo sentado. As mãos fraquejam e ele deixa cair o telefone enquanto ouve um grito abafado no silêncio – “alô!” “alô!”. Não percebe quando alguma coisa passa a seu lado deslizando como um fluido para cruzar a recepção em direção à porta fechada e retornar ao jardim.
Lá fora as plantas se alvoroçam, ensandecidas.

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