sábado, 4 de julho de 2020






AS CORES DO SWING
CAPÍTULO 1 - O REI DO SWING
(epílogo)

Com uma crescente preocupação do conservador Ferde Grofé, que começou a pressentir que os seus arranjos bem cuidados acabariam por ser preteridos por esta “novidade passageira”, Whiteman deu início a um trabalho intensivo para transformar a sua orquestra definitivamente numa big band de swing, principalmente depois que pensou ter conseguido domar Bix Beiderbecke e após ter obtido formalmente a aprovação dos músicos de Ellington sobre a nova maneira de interpretar a sua música.
Para tanto, ele decidiu investir pesado, pagando dois mil dólares pela compra de vinte partituras escritas por Don Redman, um saxofonista de grandes recursos que era o principal responsável pelos arranjos jazzísticos da orquestra de Fletcher Henderson. Com isso, para desgosto de Grofé, Paul incorporou de vez a necessária negritude do jazz nas interpretações da orquestra, dando assim mais suporte às intervenções de Bix.
Os problemas do maestro com o trompetista, entretanto, continuavam.
Bix sempre carregava no bolso do paletó uma garrafinha de formato anatômico contendo uísque ou gim, junto com um providencial saquinho de cravo da Índia, com o qual disfarçava o hálito de álcool, e discretamente, nos intervalos dos ensaios e das apresentações, dava uma rápida esticada até o banheiro para “matar a sede” e acalmar os nervos.
Quando voltava à cena, ele sentia que seu sopro estava mais macio e que sua criatividade extrapolava os arranjos ainda um pouco rígidos para a sua vivência jazzística, registrados nas partituras que ele absolutamente não lia.
Como Paul era exigente no que dizia respeito ao comportamento dos seus músicos, toda esta maquinação era feita por detrás dos panos, o que aumentava a tensão e o esgotamento nervoso de Bix.
Ao mesmo tempo em que a orquestra dava os primeiros passos para desvendar os mistérios dos arranjos de Redman, Bix obteve licença para tratamento médico, com a recomendação de que se dedicasse aos estudos da leitura de partituras enquanto descansava dos palcos, a fim de que pudesse definitivamente fazer parte do naipe de metais nas passagens mais elaboradas que exigiam afinidade e afinação do conjunto.
Ele voltou a tocar em 1929, mais corado e bem disposto, aparentemente comprometido com as “malditas” partituras (na verdade, o que ele colocava na estante, por sobre a capa oficial do caderno de música, eram livretos contendo histórias policiais, cujas passagens ele lia nos intervalos para arejar a mente, antes de voltar a tocar seguindo apenas o seu instinto).
Whiteman era um homem maduro e vivido, e sabia da artimanha. No entanto, fazia de conta que nada percebia, para manter o respeito e a unidade do grupo. O que ele não suportava era o fato de Bix ter voltado a beber e de não cumprir com seus horários como determinado, dando início a uma série de discussões e reprimendas que inevitavelmente provocavam uma profunda depressão no trompetista, o que provavelmente teria ajudado a acelerar o seu fim precoce.
Por outro lado, os Estados Unidos atravessavam uma crise sem precedentes, com a recessão que se instalara no mesmo ano causada pela quebra da Bolsa de Nova York, provocando falências, desemprego e suicídios, tudo aliado a uma total falta de perspectivas e oportunidades e a uma sensível mudança no comportamento da população, o que iria perdurar por quase toda a década seguinte.
O burburinho e a agitação começavam a se transferir de Chicago para Nova York, que aos poucos se impunha como o novo templo da badalação noturna, mesmo dentro do cenário pessimista em que o país se encontrava.
Insatisfeito com os rumos que as coisas estavam tomando, começando e enfrentar dificuldades financeiras, e sem poder contar com a opinião de Ferde Grofé, com quem havia rompido, Paul teve a companhia de um outro amigo, o crítico musical Theodore Gordon, num outro jantar no Joe’s.
Naquela noite, a lua brilhava branca e redonda, e a temperatura se apresentava agradável. Paul, no entanto, sentia um estranho e despropositado frio, e pediu conhaque com mel para bebericar ao invés do tradicional pernot.
Paul e Gordon discutiram e ponderaram, pensaram e repensaram a situação em que a orquestra se encontrava, pesaram os prós e os contras e analisaram com detalhes os caminhos que a música estava tomando, em especial naquelas paragens em que se encontravam.
Paul se mostrou seriamente preocupado com os problemas que afetavam todas as atividades do país e que já se faziam presentes no segmento da música, com orquestras se desfazendo, gravadoras reduzindo a quantidade de sessões, teatros fechando as portas e o público se recolhendo às suas casas quando ainda tinham casas para se recolher.
Por fim, conversaram sobre a decadência física e moral de Bix Beiderbecke, sobre a queda de popularidade que o stomp começava a experimentar e sobre o futuro da orquestra.
Ao final da noite, com a mente e corpo aquecidos pelo conhaque, pela conversa e pelo farto cozidão irlandês servido pelo próprio Joe, Paul Whiteman se decidiu por baixar a temperatura da sua música, repor alguns dos arranjos antigos, usar o jazz apenas como material de referência e, por fim, demitir Bix e os seus demônios, porque simplesmente não conseguia aturá-lo mais.
A expectativa de Paul Whiteman era a de que, para ele, a vida iria continuar como era antigamente. Apesar da sua força de vontade, no entanto, a orquestra começava aos poucos a perder popularidade, pois as atenções gerais se voltavam para outras bandas que realmente tocavam o que era definitivamente chamado de jazz – ou swing, como queiram.
Depois de ter se livrado de Bix Beiderbecke, Paul precisava repor a qualidade perdida. Assim, outros músicos começaram a participar do grupo. Eles não possuíam o mesmo talento de Bix, mas pelo menos encaravam o trabalho com mais responsabilidade.
Paul contratou os irmãos Teagarden – o trombonista Jack e o trompetista Charlie – donos de uma vasta experiência, adquirida em orquestras como a de Ben Pollack e em grupos de dixieland. Para substituir Bix nos solos de trompete, ele trouxe Bunny Berigan, egresso de algumas importantes orquestras de dança do leste e do meio-oeste, como as comandadas por Frank Cornwall e Merle Owens.
Além disso, Paul sabia que sempre poderia contar com o amigo Trumbauer, que se desdobrava não só na execução do seu saxofone, mas também na procura de contratos comerciais para manter a banda em atividade e em alta.
Mesmo assim, ao contrário do que ele previra, a sua música soava cada vez mais anacrônica, pois o sofrido povo americano preferia fugir dos problemas ouvindo e dançando músicas alegres e saltitantes – no caso, o swing – ao invés de se lastimar ao som da sua melodia romântica, sentimental, mas – por que não dizer? – depressiva.
As coisas começavam a mudar rapidamente no panorama musical norte-americano, e a velocidade da mudança não era aquilo que convinha exatamente a uma pessoa como Paul Whiteman, acostumado com uma vida programada e rotineira.
O maestro se sentiu um pouco culpado quando soube da morte de Bix em 1931, vítima de uma pneumonia agravada pelo excesso de álcool. Se tivesse tido um pouco mais de paciência – pensou Paul – talvez o trompetista tivesse superado a depressão e a angústia e pudesse ter vivido um pouco mais.

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Na ocasião da sua morte, Bix estava negociando a sua ida para a Casa Loma Orchestra, onde iria trabalhar novamente com Jean Goldkette.
A Casa Loma na verdade ainda não existia com esse nome. Era então uma orquestra chamada Orange Blossoms, que se exibia em Detroit, mas cujas atividades artísticas haviam naufragado com a recessão. O ex-bandleader Jean Goldkette e um empresário de nome Henry Horvath resolveram contratar os músicos da Orange Blossoms para abrilhantar as noites dançantes do famoso Hotel Casa Loma (daí o novo nome da orquestra) em Toronto, no Canadá. Ambos estavam recrutando novos músicos para dar mais qualidade aos Blossoms, e Goldkette ficou sabendo que Bix estava novamente disponível no mercado. O que ele não sabia é que Bix já estava em frangalhos, e que a sua saúde estava tão comprometida.
Quando tomou conhecimento que o Hotel Casa Loma estava planejando contratar uma orquestra para se apresentar no seu salão social, Paul Whiteman começou a mexer os pauzinhos para que a orquestra contratada fosse a sua. No entanto, Jean Goldkette, na condição de responsável pela contratação, deu preferência à Orange Blossoms por considerá-la “mais quente”, e mais adequada às exigências do público no momento. Assim, Goldkette simplesmente disse “não” a Whiteman.
A resposta negativa mexeu muito com os brios de Paul Whiteman, que ficou extremamente ressentido – afinal, quem era Goldkette para se colocar no papel de juiz da sua música?
Como, porém, “Deus costuma escrever certo por linhas tortas”, pelo menos essa era a opinião de Whiteman a respeito do caso, a aventura de Goldkette acabou se transformando num redondo fracasso. A “sua” Casa Loma não deu certo em Toronto, cidade mais fria e menos propícia a propostas musicais do que Chicago ou mesmo Detroit, de onde ela saíra. Assim, a Casa Loma Orchestra manteve o novo nome, mas teve que voltar às suas origens.
Detroit se transformara, contudo, num deserto para o entretenimento, e a Casa Loma, então dirigida pelo bandleader Henry Biagini, e tendo o saxofonista Glen Gray como arranjador, teve que mudar novamente de rumo, começando a excursionar pelo país para finalmente conseguir alcançar o sucesso desejado.
Este era o panorama da música de orquestra no início dos anos 1930, cheio de expectativas de mudanças, o que representava um novo desafio para “O Rei do Jazz”.
A década começara ao som colorido do swing, que substituía definitivamente o stomp pesado e simples, e eliminava os resquícios da “sweet music”. O dixieland tocado por grupos de sete ou oito músicos, retrato mais fiel do jazz até então, dava lugar a orquestras com quatorze a dezesseis integrantes. No entanto, embora apostasse numa proposta de evolução musical, a maioria das big bands convencionais começou com o passar do tempo a adquirir uma personalidade sensivelmente comercial, mesmo contando com todo o apoio da harmonia e das estruturas do jazz.
Mesmo assim, algumas orquestras continuaram a executar o swing sem perder a qualidade jazzística, independentemente do aspecto dançante que era passado para o público.
A sensibilidade dos arranjadores e dos músicos fazia do swing um jazz definitivo, como afirmava Cootie Williams, incluindo solos de improviso, riffs, síncopes e tudo o mais a que tinha direito.
Paul Whiteman não havia conseguido situar a sua orquestra entre as definitivamente jazzísticas, mas soube resistir sem comercializar a sua arte. O mercado da música, no entanto, estava sendo ocupado por outras orquestras que caíram no gosto popular e no agrado da crítica.
Don Redman, cujos arranjos ajudaram Whiteman na sua busca por um lugar no jazz, começou a dirigir a sua própria orquestra, chamada McKinney’s Cotton Pickers, assumindo no outono de 1931 o grupo que havia sido formado em 1922 pelo baterista William McKinney. O grupo contava com Louis Armstrong, recém-chegado da orquestra de Fletcher Henderson, Coleman Hawkins, um saxofonista de sopro forte e austero, também vindo do grupo de Henderson, o trombonista Charlie Green, e outros bambas da época.
Fletcher Henderson, mesmo perdendo três dos seus principais músicos, não ficou atrás e manteve o seu carisma, escrevendo ele mesmo os arranjos para a sua orquestra e chegando inclusive a superar, neste métier, o trabalho anteriormente desenvolvido por Redman.
Já Duke Ellington prosseguia impávido com o seu trabalho como se nada – recessão, modernização – estivesse acontecendo.
Em Kansas City apareceu um fenômeno chamado Benny Moten, que serviria de paradigma para um jazz de big band mais voltado para o blues do que para o swing, uma espécie de voz discordante que levaria o jazz orquestrado para um outro campo, posteriormente cultivado por Count Basie. Talvez fosse esse exatamente o trabalho que Paul Whiteman havia sonhado e não conseguira fazer, por insuficiência de blues.
Apesar dos anos de recessão, o ambiente musical não arrefeceu em Nova York, com os negros comandando os shows no Harlem, “uptown”, e os brancos acontecendo no Times Square, em especial nos teatros da Broadway.
No meio deste cenário, Paul Whiteman começava a sair de cena, com eventuais apresentações na parte branca da cidade e em outras localidades espalhadas pelo país, mas nesta altura a sua música soava definitivamente “kitsch”. Ele fez também algumas gravações bissextas, até que tentou uma cartada decisiva em 1938, rejuvenescendo a orquestra com a participação do grupo vocal The Modernaires sem, no entanto, obter o desejado sucesso.
Após sucessivas tentativas entre 1940 e 1944, sempre se apresentando com formações diferentes em diversas cidades do país, Paul fechou a cortina.
Sua história musical parece representar o lado B da história do swing, sem nunca ter feito parte do lado A da história contada pelos historiadores de jazz.



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