segunda-feira, 24 de agosto de 2020

 


AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

FINAL DO CAPÍTULO 8 - O LINDY HOP

Norma Miller tinha apenas quatorze anos quando foi descoberta por Herbert White. Como outras adolescentes, ela gostava de dançar, alegre e solta, na calçada em frente ao Alhambra Ballroom, e também como outras adolescentes ela tinha o sonho velado de algum dia poder dançar não na rua, mas dentro do teatro, para ser admirada e aplaudida pelo público.

Certa tarde Herbert White estava saindo do teatro, onde estivera assistindo os ensaios para o show da noite e parou para ver alguns jovens se divertindo ao som da orquestra que continuava tocando e que fluía através da porta entreaberta.

Rapazes e moças se dedicavam à dança com todo fervor, e uma garota alta e elegante executava os seus passos com tamanha desenvoltura que ele se fixou nela com determinação.

A garota era bonita, muito jovem, e possuía um brilho diferente que a destacava dos outros.

Apesar de quase menina, Norma já possuía um corpo e gestos “de mocinha”, apimentando a música com a dose exata de sensualidade, exalando inocência e ao mesmo tempo maturidade nos seus passos milimetricamente corretos.

White se aproximou da garota e puxou conversa, elogiando o seu desempenho artístico e procurando saber se Norma teria algum interesse em se exibir profissionalmente.

A princípio, ela se assustou. Aquele homem que se dizia chamar Mister White tinha o olhar penetrante e uma expressão estranha no rosto austero. Era um homem maduro e, fosse ou não verdade o que ele dizia, soava amedrontador. Aos poucos, porém, ela foi confiando na conversa dele e quando entendeu que ele era o responsável pela dança do teatro se sentiu aliviada e lisonjeada. Finalmente declarou que precisava perguntar para a avó, com quem morava, pois ainda não tinha atingido a maioridade.

Mesmo ficando ligeiramente desapontado com a pouca idade de Norma, White a convidou para ensaiar na semana seguinte do lado de dentro do salão – e convidou também alguns outros participantes do grupo que se esbaldavam na rua, para evitar comentários e mal-entendidos, apostando que dificilmente teria problemas com a lei, pois a fiscalização naquelas bandas era para lá de precária, e a garota parecia definitivamente mais velha do que deveria indicar o seu documento de identidade.

“Nada que a redação de um bom contrato não possa resolver”, pensou ele.

A avó de Norma, uma ex-escrava chamada Dorothy Turner não opôs nenhum obstáculo quanto às pretensões do empresário.

Em primeiro lugar, tratava-se de uma oferta de emprego, sonho de consumo de boa parte dos habitantes do lugar. Depois, ela já tinha ouvido falar de um tal “senhor Whitey” que gerenciava espetáculos de dança, e seu nome não sugeria nada de errado. O “senhor Whitey” parecia ser uma pessoa decente e honesta, ela ponderou – “um verdadeiro cavalheiro”.

Assim, com as bênçãos de Dorothy, Norma ingressou no show business.

Dorothy sempre houvera estimulado a neta a participar de concursos de dança, pois de vez em quando surgia de lá algum dinheiro para fazer frente às despesas da casa mal provida pelo tio Josh, que trabalhava como porteiro de um cabaré de segunda classe e costumava beber o salário junto com as funcionárias de baixa reputação.

Norma começou a se apresentar no grupo de White ao lado de um parceiro que Dorothy não aprovava muito, um tal de “Twistmouth” George, cuja fama de boêmio e de namorador extrapolava os quarteirões do bairro e colocava a segurança da mocinha em risco.

Mas “Twistmouth” George era um grande dançarino e também possuía um pequeno grupo de lindy hop, e não foi por outra razão que ele também chamou a atenção de White, que além de contratar um dançarino de qualidade também eliminaria parte da concorrência.

Além de um grande dançarino, George era também um grande fanfarrão. Ele se considerava o melhor do Harlem e costumava dizer que qualquer garota que porventura se apresentasse ao seu lado fatalmente faria sucesso na dança e que, no mínimo, se quedaria apaixonada pelo seu charme.

Norma Miller já conhecia George. Foi dançando com ele que ela se convencera ter de fato os atributos necessários para ser uma lindy hopper, tanto pelos elogios do próprio parceiro como pelos aplausos recebidos nos diversos concursos dominicais de dança disputados no Apollo Theater.

Quando o senhor White os convidou para fazer parte do seu seleto grupo, “Twistmouth” George exultou, pois achou que não apenas faria com Norma o par perfeito como finalmente conquistaria o seu coração.

No entanto, suas previsões não foram confirmadas. Ao invés dele, Herbert White decretou que Norma fizesse parceria com um sujeito magrinho e irrequieto que havia sido contratado seis semanas atrás, chamado Frankie Manning. Quanto à paixão, Norma – apesar da pouca idade – já sabia discernir entre um fogoso passatempo descartável e um futuro mais apropriado para as suas ambições.

A segunda grande e agradável surpresa de Norma aconteceu logo em 1934, quando Herbert White resolveu levar sua trupe – ela incluída – para uma turnê de algumas semanas pela Europa. O lindy hop ganhava status e iria mostrar a sua arte no Velho Continente, e a nova estrela se destacava, ganhava altura da noite para o dia e se transformava na primeira dama do corpo de baile.

Anos depois, ao escrever a sua autobiografia denominada “Swingin’ At The Savoy – A Memoir Of A Jazz Dancer”, Norma admitiu que, à parte o fascínio de se apresentar em outro continente, as noitadas de dança da turnê européia acabaram se transformando num autêntico desastre devido à baixa qualidade da música executada pelas orquestras europeias contratadas para abrilhantar o show. É claro que dançar no Savoy, no Cotton Club ou mesmo no Teatro Apollo tendo por background o som da orquestra de Fletcher Henderson ou de Chick Webb era completamente diferente de ser acompanhada por um combo inglês composto por quatro ou cinco elementos que possuíam um conceito limitado do verdadeiro swing.

Entre as curiosidades narradas no livro, existe um comentário bastante singular, raramente abordado pelos historiadores de jazz, e que aqui entra como um aposto na narrativa sobre a história do lindy hop: a briga de Chick Webb com Count Basie.

A confusão causou um grande mal-estar entre Herbert White e Chick Webb porque o maestro-baterista acusara todo o grupo de hoppers de estar tramando contra ele em favor de Count Basie. A desavença piorou quando Webb bateu boca publicamente com Basie e se recusou tocar se os dançarinos de White não esvaziassem o salão, o que quase causou uma comoção pública. Em breve, Webb e Basie selariam a paz através da intermediação de White e voltariam a se enfrentar – desta vez musicalmente – numa noite que faz parte da história do Savoy Ballroom, como se verá mais adiante.

O fato é que White era um comerciante nato e tratava o lindy hop como se trata uma mercadoria qualquer. Seu negócio não era gostar de swing, era fazer dinheiro com o swing e, por não ser músico nem ter afinidades empresariais com músicos, ele achava mais fácil gerenciar um grupo de dançarinos do que trabalhar com maestros e arranjadores.

Não foi difícil para ele, portanto, desculpar-se pelo ocorrido, demitir três ou quatro dançarinos possíveis responsáveis pelo boato, restabelecer a paz com Webb, manter uma política de boa vizinhança com Basie e fazer o show continuar.

 

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A parceria Norma Miller-Frankie Manning deu muito que falar, tanto no aspecto musical como no que diz respeito às suas relações pessoais, mas eles sempre juraram ter sido apenas e nada mais do que grandes amigos, e que jamais tiveram qualquer intimidade maior, a despeito dos inevitáveis comentários e mexericos típicos do meio artístico.

De acordo com Norma, eles jamais colocariam em risco uma sociedade tão perfeita em troca de momentos fugazes que o tempo se encarregaria de apagar. Afinal, eles não eram enamorados um pelo outro; os dois eram apaixonados pelo swing, em particular pela dança.

Nos anos 1940 Norma se desligou de White e montou seu próprio grupo de dança, o qual denominou Norma Miller’s Dance Company, mas continuou esporadicamente a se apresentar com Frankie Manning aqui e acolá, sempre que se apresentasse uma situação propícia.

A alegre adolescente das festas de calouros no Teatro Apollo se transformaria sessenta anos depois em uma professora com mestrado de dança popular nas Universidades de Stanford e do Havaí.

A Rainha do Swing, como Norma foi chamada, foi agraciada em 2003 com o prêmio National Endowment of the Arts pela sua importância na criação acrobática no lindy hop. Ela morreu em 2019 pouco antes de completar 100 anos, deixando sua marca na coreografia da dança dos shows musicais nos estúdios de Hollywood e nas emissoras de televisão americanas.

 

 

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