domingo, 13 de setembro de 2020




AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 11 - O REI DO SWING
            (continuação)

O senhor David Goodman era um judeu russo que havia imigrado para os Estados Unidos no fim do século dezenove para fugir do anti-semitismo. David trabalhava como alfaiate em Varsóvia, mas na América teve que completar a renda com um emprego menor em um frigorífico de Chicago, participando da matança dos bois e da limpeza do pátio onde o gado era esfolado.

O salário era também pequeno, do tamanho do seu serviço, e mal dava para sustentar a família composta de mulher e doze filhos.

Sua principal atividade era livrar o pátio do frigorífico das vísceras, da gordura e do sebo que se acumulava a cada degola, enfiando as botas de cano longo até a altura do tornozelo naquela massa sangrenta e disforme enquanto utilizava uma pá para jogar os detritos dentro dos recipientes adequados.

Quando David chegava em casa, um quarto e cozinha alugado na Maxwell Street, o pequeno Benjamin – a quem chamavam de Benny – lá estava esperando para abraçá-lo cheio de alegria, embora mal conseguisse suportar o mau cheiro que dele exalava.

Benny tinha muita pena do pai, e mesmo sendo ainda uma criança, imaginava o que poderia ser feito para livrá-lo de tal pesadelo. Sonhava em aprender alguma profissão para ajudar nas despesas da casa, e a sua preocupação o tornava uma criança arredia, pouco sujeita a brincadeiras com outros meninos da sua idade.

Como judeu praticante, Benny ia regularmente à sinagoga de Kehelah Jacob, onde havia uma modesta escola de música. Começou a se interessar pelo clarinete e a ter contato com o instrumento através do professor James Sylvester.

Sylvester entremeava suas aulas práticas com noções de teoria musical, e pelo desenvolvimento surpreendente e prematuro de Benny ele logo pressentiu que o garoto teria futuro. Tendo isso em mente, tão logo sentiu que o momento era apropriado o professor o incluiu numa banda de meninos formada por crianças pobres cuidadas por uma dama de nome Jane Adams, que administrava uma casa de caridade chamada Hull House.

Ele ainda usava calças curtas quando resolveu, junto com um amigo da Hull House – Dave Tough – se juntar a um outro grupo de adolescentes que tocava na Austin High School, uma escola das redondezas. A banda tinha o sugestivo nome de Austin High School Gang.

Benny teve um crescimento rápido como músico, tendo inclusive a oportunidade de participar da orquestra de Benny Meroff, onde imitava o então famoso clarinetista Ted Lewis, um bem sucedido músico branco que tocava na Original Dixieland Jass Band.

Quando menos esperava, Benny começou a se apresentar como profissional e a ganhar algum dinheiro, dando-se conta que a partir de então sua música poderia representar para ele um futuro promissor, e para o pai a redenção e uma velhice melhor.

Benny tinha dezesseis anos quando foi chamado por Ben Pollack para ir a Los Angeles a fim de ingressar na sua orquestra, a Ben Pollack and His Californians, dezessete quando participou das suas primeiras gravações, e dezenove quando viu pela primeira vez o seu nome impresso no selo de um disco.

Tudo parecia estar caminhando dentro do que Benny esperava, mas o velho David Goodman andava muito irritado com a situação, pois não se conformava em ver um filho pagando as suas contas.

É claro que David não chegava ao ponto de sentir saudade dos tempos em que havia trabalhado como carniceiro, emprego que abandonara na tentativa de se dedicar apenas à profissão de alfaiate, mas se sentia bastante incomodado no seu orgulho de pai de família.

O velho David se achava incompetente e ficava envergonhado consigo mesmo por não bancar os recursos da casa como um chefe da família deveria fazer. Com a demanda de clientes em baixa, ele saía de casa pela manhã para perambular pelas ruas até a hora do almoço, chegando em casa não mais cheirando a gado morto, mas a bourbon falsificado.

Numa das suas idas e vindas, o pior aconteceu: o senhor David Goodman foi atropelado por um automóvel quando descia de um bonde. Levado inconsciente para um hospital de Chicago, ainda conseguiu sobreviver por dois dias, mas não resistiu e morreu.

A morte de David deixou um vazio na vida de Benny, que muitos anos depois ainda se confessava ressentido por não ter tido o tempo necessário para dar ao pai uma vida decente, depois de tantos dissabores – a mudança da Polônia para os Estados Unidos na condição de imigrante pobre, o sub-emprego, as humilhações que passara por ser judeu, os dias em que sentia o estômago doer de fome e a morte inglória.

Com o passamento do pai, Benny voltou de Los Angeles para Chicago, mas a cidade perdera o encanto. Nem o fato de gozar de um relativo sucesso junto a Ben Pollack e outros band leaders, com um futuro praticamente garantido no cenário musical do show business local, fez desaparecer o desencanto que estava sentindo.

Então, Benny fez as malas e partiu para Nova York, onde seria um mero desconhecido e lutaria durante algum tempo para se tornar famoso, trabalhando de free-lancer como músico de aluguel.

Ele tinha alguma contribuição para dar, pois já esbanjava uma técnica apreciável executando solos que haviam ficado marcados pelos clarinetistas que ele ouvira na sua infância, notadamente o pessoal de Nova Orleans, como Johnny Dodds, Leon Roppolo e Jimmy Noone, misturado com os trinados mais comerciais de Ted Lewis.

Goodman era uma pessoa arrojada e decidida a subir no mundo artístico que Nova York lhe proporcionava. Descobriu onde o trompetista Red Nichols realizava os seus ensaios, num galpão próximo à Rua 52, e para lá se dirigiu tendo em mãos o estojo contendo o seu clarinete.

Lá chegando, encontrou pela frente um porteiro mal-encarado que lhe disse Red Nichols estar ensaiando e que não havia interesse em fazer experiências com novatos. “Músicos como você aparecem todos os dias para pedir emprego e Red não aguenta mais ouvir mediocridades”, disse ele com a autoridade de um maestro.

Benny Goodman retrucou educadamente que já tocava profissionalmente há algum tempo, e tudo o que queria era mostrar seu estilo para o senhor Nichols, ao que o porteiro replicou que ele teria que marcar dia e hora para ser recebido – “mas não agora!” – concluiu.

Benny Goodman agradeceu e fingiu que ia embora. Tão logo o porteiro fechou a porta, ele tirou calmamente o instrumento do estojo, experimentou o bocal e prestou atenção na música que a banda estava tocando, uma velha conhecida sua de Chicago, chamada “King Porter Stomp”.

Goodman esperou pela hora do solo de piano, quando o volume arrefecia, e atacou um improviso alto e de bom som. As notas musicais extraídas do seu clarinete entraram pelo galpão adentro e despertaram a curiosidade de Nichols que imediatamente parou o ensaio e se dirigiu para o lado de fora a fim de ver o que estava acontecendo. Ato contínuo, Nichols convidou Goodman para entrar no galpão e exercitar um pouco com os seus músicos.

Depois dessa apresentação nada ortodoxa, presenciada pelo porteiro boquiaberto, Benny Goodman começou a participar extemporaneamente da orquestra Red Nichols and His Five Pennies, embora preferisse continuar como free-lancer, o que lhe possibilitava tocar com outras bandas e conhecer outras práticas, além de sempre fazer um dinheiro extra.

Seu nome crescia no mundo musical de Nova York, e ele logo se viu convidado a tocar com Isham Jones, que dirigia uma das mais populares orquestras de dança da cidade, com quem ficou alguns meses antes de se unir ao seu antigo ídolo Ted Lewis, remanescente dos melhores grupos de jazz tradicional dos anos 1910.

Tocar com Lewis trouxe a Goodman uma série de benefícios.

Primeiro, ele deixou definitivamente de imitar Lewis ao perceber que tocava melhor do que ele. Goodman extraía do clarinete seqüências melódicas e paráfrases muito mais bem elaboradas e criativas do que o antigo ídolo. Depois, ganhou uma admirável noção de como tocar em equipe, e pela primeira vez teve a certeza de que poderia apostar numa orquestra própria, com mais brilhantismo do que a de Ted Lewis ou mesmo Isham Jones, desde que trabalhasse com arranjos mais arrojados e produzisse uma maior leveza no beat da música.

Pouco tempo depois, em 1932, Benny Goodman, no vigor dos seus vinte e três anos, montava o seu primeiro grupo orquestral, recrutando músicos aqui e ali, a maioria dos quais participantes de sessões free-lance, como ele.

Em 1934, Goodman já possuía no elenco figuras de proa do jazz novaiorquino, como o trompetista Bunny Berigan (logo depois vieram também Harry James e Ziggy Elman), o pianista Jess Stacy e o baterista Gene Krupa. Mais tarde Goodman aprimoraria os arranjos, trabalhando com alguns cadernos sofisticados adquiridos de Fletcher Henderson.

 


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