terça-feira, 1 de setembro de 2020

 




RUA DA MISERICÓRDIA  

(Republicado, extraído de O CONTADOR DE HISTÓRIAS)
Augusto Pellegrini

 

          Quem desce a Rua da Misericórdia tem a impressão de que está se dirigindo ao fundo de um poço. Lá em baixo, mesmo quando brilha o sol, a luz parece não chegar com intensidade nem irradiar o seu calor.

          Muitas pessoas vão à praça quase todos os dias, vindas de diversos lugares, e descem os duzentos metros de rampa em direção à casa de número 341, um pequeno sobrado com pintura verde descascada em frente a um calçamento cheio de trincas, por onde crescem ervas rasteiras que formam figuras irregulares, mas mesmo assim bastante agradáveis de se ver. Essas pessoas peregrinam com a intenção de consultar um mago, e têm na mente a fantasia e a esperança de resolver as suas dores da alma.

          Na casa, ao lado da porta e de uma janela que está sempre fechada, há uma placa que serve de chamariz e indicativo a tantos visitantes – “Professor Galba” – e em letras menores – “Qualquer que seja o seu problema, ele será resolvido”.

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          Certo dia surgiu no consultório um homem estranho que não quis preencher ficha nem declinar qual seria o seu problema, apenas se identificou como Inspetor Ramalho.

          O professor ficou impressionado com o porte do indivíduo: meia idade, altura avantajada, ombros largos, má catadura, calvo da testa até o alto da cabeça, mas com cabelos desordenados nas laterais, chegando mesmo a cobrir as orelhas. Trajava um casaco escuro por cima de uma camisa xadrez, o que lhe conferia um aspecto de lenhador.

          O Inspetor foi direto ao ponto: na próxima semana iria trazer uma pessoa para ser consultada, e esta pessoa, no menor prazo possível deveria ser estimulada a cometer suicídio. Para tanto, o professor receberia uma alta quantia, que seria paga depois que o cidadão partisse desta para melhor.

          Caso se negasse a atender ao pedido, o professor seria preso por prática ilegal da profissão e sua vida se transformaria num inferno, correndo mesmo o risco de perdê-la numa das esquinas tortuosas da cidade (e fez um gesto assustador com a mão, cortando o ar com energia – zás – como se estivesse rasgando uma garganta).

          Olhou fixamente nos olhos do assustado professor e deu um aviso: “Você não conseguirá me localizar nem adianta fazer qualquer denúncia à polícia, pedindo proteção. Eu sou a polícia”.

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          Num final de tarde, o sombrio Inspetor apareceu no consultório na companhia de um homem rechonchudo e de faces coradas como um bebê premiado, um tipo que simplesmente ama a vida e a quem nada poderia causar desespero ou a busca de soluções extremas, exatamente o oposto do que se espera de um suicida.

          O professor Galba chamou o Inspetor para a sua sala, pois precisava conversar sobre alguns detalhes que no seu dizer facilitariam a empreitada.

          Sentaram-se frente a frente e o professor ofereceu um cálice de grappa para aquecer a conversa e facilitar o diálogo. O Inspetor concordou de bom grado em tomar alguns goles e o professor apanhou a garrafa, serviu os dois cálices e começou uma peroração que indicava ao policial que tudo estava sob controle e que o plano seria cumprido sem maiores dificuldades.

          O Inspetor sorveu a bebida de uma talagada, mostrando apreciação pela sua qualidade e pela cumplicidade do professor, e decidiu tomar mais uma dose, desta vez sorvendo civilizadamente, enquanto o plano de execução da ideia era explicado em detalhes através de uma bem elaborada história.

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          Dois dias depois, os jornais da cidade falavam com estardalhaço sobre um corpo encontrado debaixo da ponte, ao lado sul do porto. A cidade, normalmente tranquila, estava alvoroçada, pois raramente servia de modelo para manchetes deste tipo.

          O cadáver encontrado era de um homem alto e calvo, e apresentava um profundo talho na garganta, mas os exames de praxe mostraram que a vítima havia sido envenenada por cianureto, provavelmente ingerido com algum tipo de bebida.

          A vítima era um policial aposentado chamado João Madeira, que já fora também conhecido por Rebouças, Trancoso e Ramalho e que atualmente vivia de pequenos expedientes.

          As coisas no número 341 da Rua da Misericórdia continuaram funcionando normalmente.

 

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