sábado, 20 de março de 2021

 


O TIO E A TIA
(Augusto Pellegrini)

          O tio e a tia se preparam para visitar a velha doente que, dizem, está muito mal e precisa de injeções e cataplasmas.
          A tia é assim mesmo, caridosa e sempre requisitada quando se trata de cuidar dos outros.  
          Durante o dia não é raro aparecerem pessoas com problemas pedindo um benzimento, um chá ou até aconselhamento médico – isto eu vejo há mais de um mês, desde quando cheguei para passar as férias neste interior cheio de natureza, sem luz elétrica, com água de poço, galinheiro, árvores frutíferas e o cachorro Zezinho.
          A tia e o tio moram sozinhos com o Zezinho, que gosta muito de mim, e meia dúzia de galinhas, que me detestam.
          Agora é noite, não sei bem o adiantado da hora, mas faz tempo que escureceu e o tio e a tia se preparam para sair.
          O jantar já foi servido e comido, a louça já foi lavada, e o tio foi fumar na porta da cozinha enquanto eu me entretinha com algumas pedras de dominó tentando construir um castelo.  
          A noite está abafada, pode chover a qualquer momento, mas eles têm que sair pra fazer caridade e pedem para eu ficar em casa – “pode pegar um resfriado, menino, a gente não vai demorar, a casa da dona Hermília fica bem ali depois do campo, logo logo a gente está de volta” – e eu percebo que eles pretendem me deixar sozinho com os meus fantasmas e com os fantasmas dos outros que estão espalhados pela casa.
          O lampião de querosene bruxuleia a sua chama e faz mover sombras sinistras projetadas pelos cantos dos móveis enquanto o avô no porta-retratos parece olhar fixamente para mim cada vez que o tio passa em frente dele com a lanterna de carbureto que vai usar para atravessar o campo. É uma lanterna mais segura no caso de chuva, pois o avô a usava para caçar rãs e ela nunca se apagou apesar da área chafurdada e do vento úmido da várzea.
          O tio veste um casaco preto e se afasta em direção à porta, fazendo com que sua imagem refletida no espelho do fundo da cristaleira se transporte parede adentro.
          Como um sapo, salto do colchão que foi acomodado no chão da sala à guisa de cama e me ponho a calçar as botinas - “eu também vou, não vou ficar aqui sozinho”.
          Tenho um calafrio só em pensar que eles poderiam ter saído depois que eu estivesse dormindo, e um calafrio ainda maior ao lembrar o armário de madeira estalando na cozinha, como se alguém estivesse a lhe abrir as portas. E também aquela lufada de vento soando como uma voz pedindo ajuda.
          “Então você vai e volta andando, é muito pesado para eu lhe carregar no colo se você dormir” - diz o tio com um ar aborrecido, como se eu fosse um peso morto a atrapalhar as suas andanças noturnas.
          E lá saímos em direção ao campo, caminhando em fila indiana, o tio na frente com a lanterna, eu no meio e a tia atrás, a me proteger.
          O céu estava escuro – acho que vai mesmo chover – o vento bate forte e a gente caminha resoluto em direção à casa da velha. O silêncio do campo é cortado pelo som de aves que guincham e batem asas - devem ser as tais corujas agourentas.
                                                           -0-0-0-
          Dever cumprido, injeções, conselhos, curativos e agradecimentos, eis-nos de volta.
          No meio do campo, afastado da trilha por onde caminhamos, vê-se na distância uma pessoa vestida de branco. Na caminhada, nos aproximamos e percebemos que é um homem, parece um soldado e chega a brilhar na escuridão da noite. Está imóvel, como uma sentinela, e não responde ao cumprimento do tio – “boa noite!” – que, nervoso com a mudez do outro, acende mais um cigarro e segue em frente, resmungando.
          Olho para trás uma, duas vezes, e o homem ainda está lá, impávido. Na terceira olhada não o vejo mais, ninguém o vê mais, sumiu como um inseto noturno se escondendo no capim crescido, sumiu como se tivesse sido tragado pelo mato do campo. Já estávamos distantes do local da imagem, mas mesmo assim prudentemente estugamos o passo.
          Sem maiores aventuras chegamos enfim em casa, nos desfizemos dos apetrechos de viagem e entre um comentário e outro e uma caneca de leite quente o tio e a tia finalmente me convencem a dormir.
          O sono custa a chegar, mas quando chega é como uma cortina escura que me protege do mundo, dos temores e do cansaço da caminhada noturna.
                                                            -0-0-0-
          Manhã seguinte, sol a pleno e som de batida de palmas no portão, junto à cerca de madeira ornamentada por flores silvestres. Zezinho latindo, alvoroçado.
          É a vizinha, comentando a plenos pulmões: “Dona Irene, a senhora já soube? Mataram um soldado ontem à noite, no campo. Uma facada no coração!”

 

 

 

 

Nenhum comentário: