quarta-feira, 17 de novembro de 2021

 


     PÁGINAS ESCOLHIDAS

O FANTASMA DA FM (1992)
(Augusto Pellegrini)

A IRA

Monsieur Patou entra pela porta da sala, dirige-se à mesa, beija afetuosamente sua Madeleine na testa  e exclama – “o que minha patinha fez hoje para o almoço?” – ao que Madeleine responde – “sopa de quiabo, mon chère”.

“Sopa de quiabo!!!” – clama Patou indignado – “mas Joujou, você sabe que eu detesto sopa de quiabo!” – “mas sopa de quiabo é tão bom…!” – e segue por aí afora uma discussão sobre as qualidades do quiabo.

Patou se deu por vencido e e sentou-se à mesa sem disfarçar um resmungo – “sopa de quiabo acompanhado com vinho du Rhône, bah!”.

Mas a primavera estava linda, Patou amava Joujou e dava nota dez para aquela linguiça cortada em pedaços com os seus maravilhosos temperos, a terrina fumegava, o relógio da sala batia meio-dia e as nuvens negras do desacordo aos poucos iam se desvanecendo no ar.

Monsieur Patou dá a primeira colherada, dá a segunda colherada, limpa o canto da boca com o guardanapo que tem preso ao pescoço e de repente arregala os olhos.

“Uma mosca!!! Uma mosca na minha sopa!!!”

O pequeno díptero, já morto e com as pernas arreganhadas flutuava nas costas de uma rodela de tomate, preso à viscosidade do quiabo como se estivesse numa teia de aranha gelatinosa.

Patou dá um salto pra trás, derramando o prato com a sopa, mosca e demais pertences sobre o colo engomado de Joujou, que exclama – “Mon Dieu!!” – e ato contínuo destempera a cabeça de Patou com a garrafa do puro Rhône safra 1982.

Está aberto um diálogo franco, franco em todo os sentidos.

O céu se veste de nuvens negras, a tempestade ruge e sem mais nem porquê espoca nas ruas uma pancadaria sem precedentes.
 

(Efeitos de uma ira repentina sobre o comportamento de velhos casais apaixonados)


 

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