sábado, 11 de junho de 2022

 


      PÁGINAS ESCOLHIDAS

Do livro À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)

SOLILÓQUIO

O que mais me incomoda em morrer é a primeira noite depois do enterro, é ter que dormir cercado de mortos que eu não conheço, sem uma companheira que me cutuque as costas para eu parar de roncar. Na verdade, me incomoda também não mais roncar.

Agora, apesar da vizinhança silenciosa e insípida, o que eu vou gostar de fato é a esperada escuridão e a ansiada tranquilidade dentro do silêncio; nada de portas batendo nem de gonzos gemendo, nada de cachorros latindo nem o prolongado pio da coruja para atrapalhar o meu sono profundo aqui nesta caixa almofadada de primeira categoria qual leito acetinado de um grande hotel cinco estrelas, fruto da contribuição dos amigos, dada a exiguidade de fundos dos meus bolsos sem fundo por ocasião do passamento, que no máximo dariam para eu me acomodar em um caixote de bacalhau fosse a escolha feita a moto próprio.

Me aborrece também ter que ficar calado à vista de tanta insanidade, agora parece que vejo melhor os falsos sorrisos e as intenções dúbias, se eu estivesse do lado de fora, ao lado deles, talvez estivesse também falando mal de mim com um sorriso de escárnio estampado na face hipócrita.
Pensando bem, ser enterrado assim tem mais graça do que ser simplesmente cremado como um pão que foi esquecido dentro do forno e depois ter as cinzas atiradas num rio como restos de um churrasco de verão.

Enterrado assim a gente tem mais dignidade e pode finalmente usar aquele terno grosso de lã, apesar de todo o calor, tendo como plateia a turba que nos cerca qual uma alcateia faminta para ter a certeza de que realmente fomos desta para melhor – ou para pior – e que nunca mais voltará a nos ver  (embora esteja escrito que nos veremos novamente muito antes do que pensam os ímpios e céticos senhores).       


(Reflexões de um defunto no dia do seu embarque para a eternidade) 




 

 

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