domingo, 10 de setembro de 2017




O ATOR

(TERCEIRA PARTE – BALÉ)


Eu nunca fui, na verdade, muito prestigiado dentro do grupo de Benito Rubaloca. Na noite de estreia de O Defunto Virgem, quando os artistas se deram as mãos e se desejaram uma sincera “merda!” para augurar boa sorte, no máximo um ou outro me mandou à merda, o que não é a mesma coisa e tem um efeito psicologicamente contrário. E assim foi durante o transcorrer da temporada.
Desta forma, eu me sentia só e gostava de ficar só, longe do que eu achava ser a mediocridade geral.
Eu me recordo de certa noite, antes do espetáculo, enquanto o público começava a se acomodar, e eu estava subitamente a sós no camarim, aproveitando para fazer uma revisão da minha vida.
Seguia cheio de dúvidas e de receio: aos quarenta e sete anos ainda não sabia ao certo se desejava realmente ser ator, mas não encontrava uma porta lateral que me apresentasse alguma outra saída. Era como se eu fosse um viciado que a cada dose, a cada peça, a cada ato, se visse mais e mais envolvido com uma coisa que aparentemente lhe dava prazer, mas que talvez no fundo detestasse.
O espelho, enorme e assustador, mostrava meu rosto macilento apesar ou por causa da maquilagem pesada, e as palavras do meu monólogo se misturavam na minha cabeça. Era sem dúvida um verdadeiro milagre que, iniciada a fala inicial, elas se encaixassem perfeitamente e saíssem da minha boca como uma torrente, obedecendo às pausas e às exclamações.
Normalmente eu era aplaudido ao final do monólogo que prefaciava o final do drama, antes que a história retornasse com a participação de Dorotéa & Cia. Eu tinha a impressão – ou pelo menos quero crer – que eles não recebiam o mesmo aplauso caloroso que eu.
-0-
A arte imita a vida, dizem os poetas. Já os sonhadores acham que a vida imita a arte.
Talvez o conceito correto fosse considerar que para certas pessoas vida e arte se confundem num só amálgama, embora para a grande maioria tanto uma como outra inexistam completamente.
Para os néscios, a arte é um bem inalcançável, é um abstrato que jamais será entendido. Para estes idiotas não existe diferença entre ruído ou música, rabiscos aleatórios ou pintura, conversa real ou encenação. Nada os faz ter a percepção de sons harmônicos, nada os faz sentir a emoção das artes plásticas ou entender a diferença entre realidade e engodo. Para eles não existe pausa, para eles não existe ilação. Vivem como se não tivessem alma.
Para estas almas vazias a vida é simplesmente um nascer e vegetar, com a preocupação primária das coisas básicas para a sobrevivência, sem a concepção de momentos mais bem vividos.
No entanto, para aqueles que foram tocados pelo condão de Apolo e que se envolveram na beleza das máscaras do teatro grego e da Commedia dell’Arte, o mundo se abriu desde cedo numa profusão de luzes, sons, cores e gestos. Cada passo dado, cada etapa percorrida ou cada ciclo concluído será sempre marcado por uma explosão de arte.
Estes felizardos respiram arte como se respira o ar, numa associação tão profunda que a inexistência de uma das alternativas implica no desaparecimento da outra.
Esta intensa associação só é possível de ser sentida por quem traz a arte nas veias.
Passei a vida inteira representando para o mundo, meu grande público.
Na escola, fazia-me de interessado para agradar os mestres, mesmo discordando deles e por vezes até os desprezando, muitas vezes achando os seus ensinamentos entediantes e pífios. Em casa, personificava o bom filho para fazer minha mãe feliz, embora nunca tivesse passado de um vil estroina.
Meu pai bem que notava a falta de sinceridade no meu comportamento, mas como ele também tinha algo de podre escondido nas suas ações aparentemente pouco sinceras, ambos preferíamos esconder as nossas ignomínias para manter incólume a harmonia do lar.
Uma espécie de armistício.
Para os vizinhos eu era o rapaz discreto e contido que não se aventurava em encrencas. Os pais me confiavam as filhas quando das festas do bairro, sabedores do caráter errático dos outros jovens e crentes no meu procedimento impoluto. Os idiotas não sabiam que eu era um ator – principiante, sem dúvida, mas mesmo assim um ator – e que eles estavam confiando as suas donzelas a um canalha.
O espelho do camarim me fita.
É estranho que este sentimento de inutilidade se apossasse de mim bem no momento em que eu atravessava a minha melhor fase de intérprete.
Casa cheia três vezes por semana, aplausos benfazejos, e o assédio do público e da imprensa deveriam me alimentar como um afrodisíaco, mas o máximo que fazia era manter as minhas defesas em alerta contra algo que eu nunca soube bem o que é. 
Como um inseto na defensiva.


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