quinta-feira, 7 de dezembro de 2017





O MURO

(Parte Quatro)

(Conto escrito para o livro “À noite, todos os gatos”, publicado em 1998)


Mas, como dizem, nesta vida infelizmente não existe riso sem lágrima e não há ponto sem nó.
A felicidade é passageira, chega o dia em que o castelo de cartas desaba e as cartas são varridas como que por um vendaval.
            Veio esse belo dia, que na verdade não foi um belo dia, mas por sinal um dia muito horroroso, desses já nascidos com maus presságios, e a minha casa foi vendida.
Ouvi o dono conversar com um homem muito alto, de gravata e óculos, um engenheiro de cabelos amarelados e sorriso desanimado, dizendo que ele iria se mudar para um outro bairro no outro lado da cidade onde comprara um apartamento que ficava próximo à escola da sua filha e do seu novo escritório e, além do conforto e da segurança – “você sabe, hoje em dia está um perigo morar numa casa, ainda mais numa rua sossegada como esta” – ganharia um bom dinheiro com a venda da casa – a minha casa! – que poderia ser transformada em um excelente ponto comercial.
Tudo foi combinado a contento e dali a duas semanas, numa magnífica manhã de sol, enquanto eu e Celeste trocávamos olhares concretos, foi feita a mudança dos móveis e utensílios, carregaram com os bancos que estavam no jardim e com as cortinas que cobriam os janelões do alpendre, a chave da casa foi entregue ao engenheiro e nós ficamos de repente abandonados, eu, a casa e o jardim, o bougainville triste e desconfiado com a súbita falta de cuidados, o portão amarrado com correntes e as correntes trancadas por um cadeado. 
           Não era todo mal sentir esta quietude, o pior ainda estava por vir.
Eu continuava amigo dos passarinhos, dos insetos, do guarda-noturno e até do casal de namorados, continuava a flertar com a minha estática Celeste e a olhar os fatos do cotidiano, apenas a minha placa de bronze perdeu o viço.


 Fomos assim levando a vida como manda a eternidade até que certo dia tenebroso o caminhão da Construtora Elipse apareceu novamente, como um pesadelo, com seus homens e suas ferramentas macabras, e o engenheiro de cabelo amarelo dando as ordens.
           O jardim será transformado em estacionamento – vamos concretar o piso – e a varanda será envidraçada com vidro fumê para servir de recepção. Acho que dá para manter o bougainville para enfeitar a fachada, mas o muro será derrubado e substituído por uma corrente para fechar o estacionamento e evitar estranhos.
O muro será derrubado??!!
           Passo alguns dias em estado de pânico e prostração e procuro tranquilizar a parede celeste enquanto vejo passar pelo meu portão uma montanha de areia, alguns sacos de cimento, madeira e ferro liso.
           Vejo os homens da Construtora Elipse, da construtora apocalipse, se chegando com seus instrumentos de tortura e demolição, marretas, pás e carrinhos de mão e, depois da primeira pancada aos poucos vou me transformando num monte de entulhos.
           A parece azul, minha adorável Celeste, permanece impassível e distante, talvez nem sofra calada, e os pombos, na falta do meu cocuruto vão arrulhar no topo das árvores ao redor.
           O meu portão e o meu galardão de bronze, número trinta e quatro, são despejados sobre a carroceria do caminhão e me dão um mudo adeus.
           De repente, não mais existo e vou parar de pensar.
            Para Celeste, deixo como herança um mundo desmazelado.

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