sábado, 9 de dezembro de 2017





I REMEMBER KAFKA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte1)

Estou mudando de residência.
A reentrância do tubo de esgoto onde eu mantinha o meu aprazível logradouro passou a não mais me satisfazer depois que começaram a usar um produto detergente à base de amoníaco que me revolta as vísceras e me afugenta e me atordoa os sentidos a cada banho tomado.
Na verdade, somos seres indefesos, sempre à mercê dos homens que insistem em nos desbaratar à sua maneira, uma delas é degradar a natureza com seus agentes químicos e desengordurantes, atacando até as paredes dos sumidouros e também a camada de ozônio lá no alto, abrindo um buraco para que algum dia o sol derrame toda a sua irradiação sobre a crosta do planeta, aniquilando com a vegetação, fervendo a água dos mares e cozinhando os peixes e crustáceos numa imensa caldeirada, derretendo cidades e assando vivos bilhões de seres humanos além de transformar outros em mutantes radioativos.
Só nós, seres indefesos é que tentaremos sobreviver nos aprofundando nas fendas e nas cavernas como temos feito nos últimos milênios.
Mas mesmo assim estou mudando de residência.
Achei um armário bem confortável de madeira onde guardam cereais e farinha e lá não descobri vestígio algum de veneno. Meu avô me ensinou que nós sempre devemos desconfiar de certas guloseimas que nos parecem saudáveis, mas que escondem bioletrinas, butóxicos de piperonitas e octibiciclohepteno – dicarboximidos na aparência de bolachas de chocolate ou gelatina em pó.
Mas o avô vem de outra época, hoje todos nós sabemos que ninguém é suficientemente imbecil para colocar estes tipos de tóxico perto da própria comida, dentro de um armário cheio de maisena, arroz, orégano e canela em pó, embora eu saiba perfeitamente que alguns deles são suficientemente imbecis para ingerir o próprio tóxico em orgias desenfreadas e proibidas por lei (mas este tipo de tóxico eles não guardam em armários de cozinha ou, se assim o fazem, disfarçam muito bem para evitar o escândalo – isto é cocaína ou araruta?), com a polícia farejando cada fresta de porta e cada salto de sapato e cada fundo de gaveta à procura de evidências.
Aqui neste cantinho eu me sinto confortável.
Aqui tem o agradável calor que provém do fogão a gás bem à minha esquerda e as migalhas derramadas me servem de cama, igual àquele gordo de camiseta que assiste televisão esparramado na poltrona babando na sua lata de cerveja, apanhando punhados de amendoins com a mão cabeluda e derramando sal e restos por toda a região circunferencial ocupada por suas protuberâncias.  
Nas noites de verão me arrisco a dar um passeio pelo jardim para encontrar alguns amigos, discorrer sobre os perigos desta vida e curtir o verde entre vagalumes e besouros e aquela flor perfumada que dizem se chamar “dama da noite” e que nos faz ter a impressão de que este mundo é realmente uma maravilha.
Às vezes faço minhas incursões pelos intestinos da casa – tudo tão quente, abafado e escuro – como um engenheiro inspecionando um abrigo antiaéreo, é por aqui ou mais embaixo que começa a se reunir o nosso exército que algum dia ainda dominará o mundo, não importa a guerra química de que somos vítimas nem a discriminação ou o comportamento que as pessoas têm a nosso respeito.
É verdade que também temos nossos inimigos, outro dia eu vi uma companheira acossada por um turbilhão de formigas gigantes e nada pude fazer para defendê-la, para intimidar as malditas ou mesmo para minorar o seu sofrimento. A cada ferroada um tremor de dor e de pavor, morrer sim, que todos somos mortais, mas não devorado vivo, sem clemência ou perdão.
Mas a natureza que nos fez odiados e repelidos foi a mesma que nos fez indefesos e inofensivos. Não atacamos, não mordemos, não mutilamos nem devastamos o ecossistema, e talvez por isso sejamos perseguidos como seres danados.
Na busca constante pela verdade e na troca de experiências com a vida e com os outros seres vivos a gente a gente aprende que a discriminação que nos aflige não atinge somente a nós, mas a milhões de outros que são caçados e esmigalhados como se com isso fosse possível destruir toda a nossa espécie de invertebrados.         
Esses homens são tolos.
Nossa família é de certa forma interminável, pois embora mortais na individualidade somos imortais na essência, crescemos e nos multiplicamos progressivamente e acredito até que tenhamos uma certa semelhança com Deus, por isso Ele não permite que sejamos dizimados até o extermínio final.

SEGUE

 


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