sexta-feira, 9 de março de 2018






O FANTASMA DA FM

(Conto publicado em 1992 no livro “O Fantasma da FM”)

(Parte 4)

Terça-feira, três da tarde, começa a reunião na sala do coordenador, onde serão tratados assuntos de interesse geral, serão distribuídos puxões de orelhas nos negligentes, nos incompetentes e nos encostados, serão tecidos elogios a dois ou três funcionários criativos e responsáveis, mas não serão divulgadas algumas medidas urgentes – aumento de salário, melhores condições de trabalho, melhorias no serviço as cantina e papel higiênico de primeira. Um debate geral, amplo e irrestrito será levado à baila enquanto a secretária com cara de secretária vai anotando com as devidas vírgulas e tudo o mais, sem omitir palavra nem palavrão.
Adalgisa, os olhos opacos pela tarde não dormida, reclama dos fantasmas enquanto olha a cara de descrédito do coordenador, explicando que o plantão noturno da FM se transformou numa verdadeira festa de vampiros, e pede para mudar de horário.
O coordenador promete rever a escala e muda rapidamente de assunto.
Se estivesse presente, o fantasma desaprovaria a ideia, mas Ernesto, o guarda do dia sabe das inquietações de Aristides e vê a coisa com outros olhos. Na sua opinião é preciso exorcizar o prédio, começando pelo alto portão de metal trabalhado, passando pelo jardim de arbustos inquietos e completando pelas dependências internas, cheias de vazio.
Durante o dia, o constante sobe-e-desce e entra-e-sai de pessoas é intenso, o chilrear de vozes é frenético e o crepitar das máquinas de escrever é barulhento assim como o zumbir da máquina de telex.
Mas à noite, para o desespero de Adalgisa e Aristides, ocorre um deslizar de sombras, um tilintar de telefones impertinentes e um olhar voraz e obsceno pelo vidro retangular do alto da porta.
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Aristides coça a cabeça, embasbacado.   
A porta grande, de vidro, continua fechada, a porta de madeira atrás de si também, e os objetos da sala de recepção e os distribuídos sobre a mesa permanecem no mesmo lugar, imóveis como convém a objetos inanimados bem-comportados.
Nenhum barulho de coisas em movimento, nenhum som de respiração, nenhum ruído de passos, mas Aristides tem certeza de que enquanto ele dormitava, o queixo pendido sobre o peito e o íntimo em estado de alerta esperando pelo trinar do telefone – tendo do outro lado uma criança com voz de anjo ou um dragão com voz de metal – alguém ou alguma coisa passou por ele como uma névoa e se encaminhpu para os meandros dos corredores da rádio.
Por mais de uma vez ele abandonou o seu posto, abriu a porta de madeira e procurou, perscrutante, pelo corredor vazio. por algum vulto ou algum ruído, mas o telefone começa a gritar insistentemente e ele volta depressa para a sua mesa para atender aquele menino que não dorme ou aquele monstro de voz tonitruante ou quem sabe aquele ouvinte mal informado que deseja saber notícias de uma outra emissora, e Aristides pacientemente informando que a pessoa ligou pata o lugar errado e desligando o aparelho com a sensação do dever cumprido.
Ainda outro dia alguém reclamava com insistência que a televisão não estava passando aquele filme que fora anunciado há uma semana, o que não deixava se ser um mistério, porque na tela do aparelho da recepção o filme estava lá com todas as cores e os olhos amassados de Robert Mitchum e sua cara de gim, e a sessão da madrugada corria aparentemente sem problemas – “...veja se o seu aparelho está sintonizado no canal correto...!” – como é dura a vida de porteiro noturno de rádio e tevê!
Enquanto isso, Adalgisa seguia animando a madrugada no seu posto de serviço – “...aqui vai um abraço todo especial para o nosso colega Ronaldo, que está ouvindo a gente em algum canto da cidade... – tentando parecer solta, alegre e descontraída, mas no fundo um pouco preocupada e insegura, como se estivesse sendo vigiada.
Por algumas vezes ela já olhara para trás, por sobre os ombros, e tivera a horrível sensação de que a porta estava sendo aberta ou que alguém a espiava por detrás do vidro.
Aí ela tremeu, espantou o arrepio como um cachorro molhado e voltou a atenção para os discos e para a música, buscando se livrar da má impressão e do mau pressentimento, afinal tudo não passava de bobagem, tudo era fruto da sua imaginação, da solidão e do adiantado da hora.

SEGUE


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