segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 




AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 12 - MÚSICA E LÁGRIMAS
            (continuação)

Às nove horas do dia 18 de dezembro, George Thomas Simon tomava o seu café matinal e lia o costumeiro jornal antes de se debruçar no trabalho.

Ele vivia confortavelmente instalado num apartamento na Rua 42, no coração de Nova York, e estava sorvendo o café bem quente com bastante lentidão para apreciar o aroma que saía da caneca e se espalhava pela sala, espantando o frio da manhã.

Sua mulher lavava as louças que haviam sobrado do jantar, num bimbalhar de talheres e pratos fustigado pelo barulho da torneira aberta.

Era mais uma segunda-feira como outra qualquer. Simon passaria a manhã examinando uma coisa ou outra e trocando ideias com a esposa Beverly, e à uma da tarde se dirigiria para a Metronome, afamada revista de jazz da qual ele era o editor-chefe.

Era um serviço que juntava as duas coisas que Simon mais gostava – a informação jornalística e o jazz – e ao qual se dedicava vinte e quatro horas por dia, pois eram incontáveis as vezes que ele atravessava a noite revisando aqui e acolá, corrigindo a notícia ou adicionando fatos novos, e preparando a nova edição, cada uma mais precisa do que a outra.

Simon estava neste estado de graça quando, de repente, seus olhos se fixaram numa manchete atordoante, e a mão que segurava a caneca tremeu, borrifando um pouco de café na toalha.

Ele pousou a caneca sobre a mesa e teve a impressão que as letras do jornal começaram a se misturar. Seus olhos marejaram e seu coração acelerou.

Estava incrédulo, boquiaberto e perplexo.

Oh, my God...” – ele balbuciou arrasado, enquanto olhava para Beverly, como se estivesse pedindo ajuda.

Beverly se acercou, preocupada com a expressão do marido, que permanecia pasmo e trêmulo, o jornal nas mãos.

Em meio às notícias da libertação da França e do recuo das tropas de Hitler para o território alemão, os jornais estampavam, no canto inferior esquerdo da primeira página, o desaparecimento do monomotor que conduzia Glenn Miller em direção a Paris. Logo abaixo da manchete a notícia concluía que o músico provavelmente havia morrido.

O choque do editor ia além da comoção natural de saber que um ídolo americano havia sofrido um acidente aéreo. Glenn Miller podia ser considerado um amigo íntimo, pelas muitas horas que haviam passado juntos tocando ou conversando sobre o jazz das big bands, assunto no qual Simon era um especialista.

A história de George Simon se confundia com a história de Glenn Miller porque Simon começara a sua vivência dentro do jazz orquestral em 1937, quando teve uma breve passagem como baterista na primeira orquestra montada por Miller.

A notícia soava, portanto, como uma pancada na cabeça.

Além de ser uma pessoa que ainda frequentava o círculo pessoal do bandleader, Simon era apaixonado pelas orquestras de swing e costumava escrever matérias para jornais e para a Metronome (dali a alguns anos ele lançaria alguns livros sobre o assunto, como “The Sinatra Report” em 1965, “The Big Bands” em 1967 e “The Glenn Miller And His Orchestra” em 1974).

O jornal comentava a notícia de uma maneira sóbria e discreta, sem rodeios, estardalhaços ou maiores detalhes. O avião transportava o bandleader e mais dois passageiros, provavelmente militares, cujos nomes foram solenemente ignorados pela imprensa do dia (dias depois, melhor informados ou talvez por respeito às outras vítimas, os jornais registraram que os companheiros de Miller eram o piloto John R.S.Morgan e o tenente-coronel Norman F.Baessell).

Mas a notícia aziaga era mais que suficiente para deixar George Simon atarantado.

Notas complementares indicavam que o dia havia estado frio e o tempo bastante nublado no percurso entre Bedford e Paris e que poderia ter havido alguma nevasca ocasional, causando algum desvio de rota.

Além do mais, especulava-se também que o C-64 poderia ter sido abatido por algum bombardeio alemão extraviado com o qual eventualmente cruzara no caminho.

Mas a notícia mais aceita era a de que, devido ao mau tempo, o avião tivesse caído sobre o mar do Canal da Mancha, não havendo sinal de sobreviventes e tampouco qualquer destroço da aeronave flutuando nas águas do canal.

 

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Dois dias depois do acidente, quando o tempo melhorou, Jerry Gray viajou para Paris a fim de colher mais informações sobre o desaparecimento do amigo e aproveitou para confirmar o show natalino, que acabou acontecendo como planejado. Mesmo não perdendo o brilho musical – com a Glenn Miller Orchestra tocando agora sob o seu comando – o show transcorreu dentro de um clima fúnebre e despertou lágrimas comovidas nos músicos e em vários entusiastas.

No meio da euforia francesa causada pela retomada da cidade, dos desfiles sob o Arco do Triunfo e da volta de exilados famosos que vinham reconstruir o país, o assunto Glenn Miller foi se perdendo no silêncio, e nem Jerry Gray conseguiu saber mais sobre o infortúnio.

O Alto Comando americano se limitou a declarar oficialmente a morte do major, que recebeu honras militares póstumas em cerimônias pontuadas por discursos e clarinadas.

Afinal, não havia sequer um corpo a ser velado, e o show teria que continuar.

 

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Enquanto preparava uma edição especial da Metronome sobre o desaparecimento do amigo – cuja matéria acabou sendo o ponto de referência para o livro enfim publicado em 1974 – Simon ponderava e se lembrava de uma conversa sem importância que havia tido com Miller no intervalo de um ensaio, quando Simon já não mais fazia parte da orquestra.

Miller se confessava então um homem valente e determinado em qualquer circunstância, mas admitia ser um autêntico covarde quando se tratava de viajar de avião.

Naquele tempo Miller ainda não havia pensado em se alistar, mas tanto o alistamento em si, que provocaria uma série de mudanças na sua vida, quanto a própria guerra, amedrontadora por tudo o que representa, não pareciam ter tido o poder de intimidar o bandleader.

As viagens de avião, porém, posto que necessárias e obrigatórias, sempre traziam um frio na barriga do maestro, que dizia se sentir mais à vontade no meio de um tornado em terra firme do que na placidez de um voo naquelas cascas de noz.

Mas numa conversa que Simon teve com Jerry Gray meses depois do acidente, o arranjador lhe afiançou que nada, aparentemente, faria Glenn Miller mudar de ideia com respeito ao voo daquele dia, embora as condições meteorológicas fossem precárias, conforme afiançara o próprio piloto, afeito a dirigir aviões em pleno calor da batalha. Gray foi além, e afirmou que poucas vezes havia visto Miller tão resoluto e destemido, apesar do seu conhecido pavor por aviões.

O que teria causado então a sua determinação e teimosia em viajar naquele dia 15 de dezembro, contra tudo o que o bom senso indicava e contra os seus próprios temores?

 

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