quarta-feira, 23 de setembro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

FINAL DO CAPÍTULO 12 - MÚSICA E LÁGRIMAS

Udo Ulfkotte foi uma figura bastante conhecida na Alemanha. Renomado professor e jornalista, especializado em política internacional e serviços de inteligência, e ex-editor do Frankfurter Allgemeine Zeitung, um tradicional diário alemão fundado em 1949, ele fez parte da equipe do chanceler Helmut Kohl entre 1996 e 1998. O Dr. Ulfkotte, como era conhecido, foi um especialista em política e jurisprudência, mas foi como repórter investigativo que ele entrou na história do swing.

O jornal que ajudou o Dr. Ulfkotte a entrar nesta história não foi o Frankfurter, mas o Bild Zeitung (atualmente chamado simplesmente Bild), um tabloide que publica matérias na linha do chamado jornalismo investigativo – pra não dizer sensacionalista – e é pródigo em assuntos polêmicos.

Pela sua natureza popular, pois tratava as celebridades, a política e as suas inconfidências bem ao gosto do leitor, o Bild já ficara famoso ao nascer, e durante mais de três décadas vendeu muito não apenas na Alemanha, mas também em outros países da Europa. Seus artigos intrigantes e suas informações discutíveis sempre fizeram e ainda fazem parte do cardápio.

O jornal revelou ao mundo uma história diferente a respeito da morte de Glenn Miller que surpreendentemente não foi escrita por um principiante, mas pelo venerável Dr. Ulfkotte, e é considerada bizarra por muitos, embora muito elucidativa para outros.

Udo Ulfkotte era muito bem relacionado com as diversas fontes oficiais e com isso conseguia invadir arquivos confidenciais de diferentes governos, o que emprestava veracidade às suas histórias.

Durante a década de 1990, ele estava fazendo uma pesquisa para um livro que versaria sobre fatos acontecidos na Segunda Guerra (o livro chegou a ser publicado depois sob o título “BND – The Secret Files”) quando teve acesso a alguns arquivos da RAF que continham um relatório secreto sobre a morte do major Glenn Miller.

De acordo com Udo, o relatório mencionava que o monomotor Noorduyn Norseman C-64 teria pousado em Paris ao anoitecer do dia 15 de dezembro de 1944 e que o major teria falecido na madrugada do dia 16 num bordel francês nos braços de uma prostituta, vitimado por um ataque cardíaco. Devido à notoriedade de Glenn Miller, a RAF e o Alto Comando americano teriam resolvido camuflar o incidente e transformá-lo em um acidente.

Isto explicaria o fato de o corpo ou os indícios dos destroços do avião jamais terem sido encontrados.

O jornal Bild Zeitung publicou a notícia com todas as letras, o que causou um clima de indignação entre os americanos e de um certo desconforto para os alemães de pós-guerra e para a frente aliada que trabalhava na reconstrução do país.

Em maio de 2000, tendo como base de pesquisa as informações de Ulfkotte, um jornalista independente chamado Chris Valenti começou a sua própria linha de investigação, mas não foi adiante por se sentir intimidado cada vez que procurava se aprofundar nas provas documentais.

 

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George Simon ficou revoltado quando leu a notícia do Bild.

Muitos anos haviam passado desde a morte de Glenn Miller e ele sentia que o seu túmulo – que na verdade não existia, porque ele fora devorado pelo mar – fora profanado.

Pouca gente, no entanto, veio em seu socorro, pois o mistério era insondável e não havia testemunhas que dessem suporte à absoluta crença que Simon guardava dentro da alma de que Miller realmente fora vítima de um acidente aéreo.

Um ex-piloto da aviação de guerra americana adicionou um pouco de veracidade ao acidente quando declarou que no retorno para a base, após incursões de bombardeio, os aviões eram instruídos a lançarem ao mar as bombas que não haviam sido utilizadas, porque eles não pousavam em aeroportos regulares, mas em navios porta-aviões, cuja pista curta provocava muito impacto na aterrisagem. Lançando as bombas ao mar, eles evitavam que elas pudessem explodir no porta-aviões.

Ele diz não garantir a data, mas que num determinado dia de dezembro de 1944, ao retornarem do continente para a Inglaterra, eles praticaram a operação padrão e tiveram a impressão que muitos pés abaixo voava um monomotor da RAF, que pôde eventualmente ter sido atingido pela chuva de bombas. Desta forma, Miller poderia ter sido vítima do que militarmente se chama de “fogo amigo”.

Por outro lado, o então tenente-coronel Robert Baker veio a público afirmando que ele – e não John Morgan – havia sido o piloto do C-64 e que o avião fora conduzido sem problemas até Paris, apesar do mau tempo. Baker prossegue dizendo que ele e Glenn Miller chegaram a tomar uns drinques num bar de Paris logo após o pouso, antes de se despedirem e de cada qual tomar o seu rumo.

A narrativa de Robert Baker pôs de novo lenha na fogueira, pois caso fosse verídica, ela provaria não ter havido acidente aéreo algum, tornando factível a história de Udo Ulfkotte.

Pra completar a mixórdia, um mergulhador inglês de nome Clive Ward declarou em 1985 ter descoberto na costa do nordeste da França a sucata – não os destroços – de um avião monomotor tipo C-64 tipo Noorduyn Norseman com o número 44-70285 ainda possível de ser lido na cauda, ou seja, o avião não teria caído, mas aterrissado normalmente, acabando por se deteriorar com o fim da guerra para ser encontrado por acaso vinte anos depois daquela tarde sombria.

George Simon morreu em fevereiro de 2001 e não teve oportunidade de ver na televisão o depoimento de um tal Arnold Smith, que foi levado ao ar em março do mesmo ano.

Smith garantiu que ele estava em Paris na noite de 15 de dezembro de 1944 quando se deparou com uma cena estranha numa das ruas centrais da cidade.

Vários MPs, como eram chamados os policiais militares americanos, estavam discutindo acaloradamente em torno de um corpo estendido na calçada e coberto por um lençol branco.

A discussão versava sobre a causa da morte do infeliz, e todos pareciam estar de acordo que, durante uma confusão entre um MP e um transeunte qualquer, o policial teria sacado a arma, que acidentalmente disparou e atingiu um oficial americano que estava próximo.

Smith permaneceu no local até que o carro oficial aparecesse para retirar o corpo e teve a oportunidade de ler o cabeçalho do relatório escrito pelo MP que atendera o caso. O nome do morto era Alton, um nome invulgar, mas ele não conseguiu ler o sobrenome. Só que Alton era o nome de batismo de Miller, e o morto era um major do exército dos Estados Unidos.

Nesta versão, Glenn Miller teria sido então, surpreendentemente, vítima de uma bala perdida.

 

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Em 1954 a Universal International Pictures lançou o filme “The Glenn Miller Story” (que em português ganhou o título de “Música e Lágrimas”), dirigido por Anthony Mann e estrelado por James Stewart e June Allyson.

No meio de tantas indagações, o filme era uma espécie de versão oficial da vida e da morte de Glenn Miller como ícone da música americana e embora não fosse legalmente autorizado, desautorizava informalmente toda e qualquer versão distorcida do ídolo.

Baseado numa história assinada por Valentine Davis e Oscar Brodney, Anthony Mann retratava aquilo que conhecia através de depoimentos de músicos da orquestra que participaram do filme – Jerry Gray entre eles – e de Helen Berger Miller, viúva do bandleader, entre outros mais ou menos envolvidos na história.

Miller era quase abstêmio e muito devotado à família e aos poucos amigos. Era teimoso e exigente quando o assunto era a sua big band e provara ter espírito de liderança e um caráter acima de qualquer suspeita não apenas no comando da orquestra, mas também quando trabalhou como arranjador para Ben Pollack e para os irmãos Dorsey.

O Glenn Miller abstêmio não tomaria umas e outras com o tenente-aviador Robert Baker ao chegar na França. O Glenn Miller responsável não ficaria circulando nas esquinas perigosas de Paris e teria se recolhido imediatamente ao hotel onde estava hospedado para preparar o trabalho do dia seguinte. O Glenn Miller devotado à família jamais teria morrido nos braços de uma meretriz. Alguns dirão que tudo é um contrassenso, mas é igualmente um contrassenso que Glenn Miller morresse de medo de avião e tivesse insistido tanto em viajar naquela tarde de mau tempo.

Anthony Mann foi muito feliz ao apresentar para o mundo o Glenn Miller que todos queriam ver, distante das maledicências de Udo Ulfkotte e das dúvidas do tenente-coronel Robert Baker e do mergulhador Clive Ward, mas foi mais feliz ainda na dinâmica imposta à película, em especial na cena em que a orquestra faz um concerto para as tropas americanas em pleno furor da batalha.

Nesta cena, a orquestra toca “In The Mood” e, ao perceber que todos estavam sob um iminente ataque aéreo por parte dos aviões da Wehrmacht, Miller provoca um diminuendo progressivo que faz com que o zunido sinistro dos pássaros alemães ficasse cada vez mais forte, enquanto os soldados que assistem ao show protegem suas cabeças com os capacetes.

Quando as bombas caem, e orquestra cresce de repente para executar o gran finale, e o seu som retumbante acaba por abafar o barulho das explosões.

A cena é tão antológica como o swing e como a história de Glenn Miller.

 

 

 

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