sábado, 28 de agosto de 2021

 


EU E A MÚSICA

Capítulo 1 – PARADA DE SUCESSOS!
Parte 3

Eu e a minha turma ingeríamos altas doses de boa música – e um outro tanto de gim-tônica – no recôndito do nosso garage club, batizado com o sugestivo nome de Bop Street, nome de uma música gravada pelo grupo de rock “Gene Vincent & His Blue Caps”. Ou então nos revezávamos nas casas de outros amigos para conhecer as novidades que faziam o nosso gênero musical, para o bem dos nossos ouvidos e espírito.
Mas, de volta àquela hora de almoço que iria mudar a história do mundo, as músicas apresentadas no programa eram anunciadas na ordem inversa, começando pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com Hélio de Alencar gritando bem ao seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, João Gilberto, uma novidade em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me deixa estático em frente ao portão. Não é samba, não é choro, não é samba-choro. O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito universal que regula o bom gosto musical.
Nas próximas décadas ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional e absolutamente discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, existe um divisor de águas entre aqueles que o idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de interagir com o público.
Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de casa, apanhei o trolleybus e fui ao chamado centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para adquirir no ato o disco “Chega De Saudade” (Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos Jobim (como no caso de Copinha, vim saber deste detalhe muito depois), o que colaborou com a magistralidade da gravação; no lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP com essas músicas seria lançado apenas no ano seguinte – 1959 – incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli), “Ho-Bá-Lá-Lá” (João Gilberto) e “Brigas, Nunca Mais” (Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutanti, teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas que incluem a mim, a minha turma da Bop Street, a turma carioca do Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os amigos do jazz, o pessoal de Ipanema e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as portas do Reino do Céu.

 

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