terça-feira, 21 de julho de 2020





AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 5 - O SONHO
(continuação)

Senhor Ellington, o que o senhor acha do racismo na América?
Ellington não respondeu de imediato. Essa era uma reação própria da sua personalidade; ele sempre procurava pesar bem as suas palavras, ao invés de emiti-las num impulso impensado, porque sabia que as suas palavras tinham peso.
Depois de meditar alguns instantes, olhando para o teto, ele respondeu:
Bem, caro Dwight, racismo é uma palavra feia, que fica ainda mais feia na medida em que você tem que lidar com ela. O racismo cria uma situação na qual você precisa aprender a conviver com ela. A intolerância racial é cruel e bastante ostensiva. No entanto, ela normalmente não chega a ser fisicamente agressiva, exceto em certas ocasiões”.
O maestro fez uma pausa e respirou longamente. Havia dado suas últimas baforadas no cigarro com piteira, e os seus dedos não mais deslizavam sobre o teclado, as mãos agora repousavam sobre os joelhos.
Uma das maneiras de se defender é ignorar este tipo de insulto e provar o nosso valor para nós mesmos e para aqueles que não querem admitir a igualdade de direitos, seja em forma de música, seja por meio de outras ações. Mas eu acho que estas mudanças devem vir naturalmente, e não através da violência ou de atitudes mais drásticas”.
Dwight Spencer não desistira de captar a alma de Duke, e a sua entrevista agora tinha a intenção de provocar o maestro.
Apesar de ser famoso, o senhor se sente discriminado, por ser negro?”. A pergunta era especialmente delicada porque Dwight, filho de irlandeses, era um homem branco de pele rosada e cabelos cor de milho, bem do tipo dos seus antepassados.
Ellington sempre ouvira este tipo de pergunta com serenidade. Outros músicos negros poderiam considerá-la uma provocação, mas ele via no repórter apenas uma forma de abordagem que conduziria a conversa a patamares mais sérios.
Muitas vezes, em muitos lugares, eu e os meus músicos fomos tratados como eles tratam os negros, isto é, nos reservando a porta de serviço, nos confinando em hotéis de terceira classe e nos tratando como estranhos mesmo quando estávamos no nosso território, como por exemplo o Cotton Club, em pleno Harlem”. Duke apanhou outro cigarro, acendeu pacientemente, soltou uma baforada para cima e, sem olhar para o repórter, que permanecia mudo, na expectativa de novas informações, continuou.
Houve uma época em que os gângsters tomaram conta do Cotton Club. Eles dominaram o lugar e chegaram ao cúmulo de reservar as melhores mesas para a clientela branca que vinha do outro lado da cidade, deixando para os negros pouco ou nenhum espaço para assistir a banda de negros que mais fazia sucesso em Nova York – a minha. Não havia reação por causa do medo – afinal, eles tinham a lei do seu lado, apesar de serem fora-da-lei”.
Dwight Spencer já ouvira esta história de outros músicos, que diziam se sentir como bichos no zoológico porque, apesar de serem admirados e aplaudidos pelos visitantes, muitas vezes não passavam de animais treinados para o entretenimento de um punhado de pessoas que apenas buscavam se divertir sem se envolver com a música. Não era isto, porém, que ele esperava ouvir da mente privilegiada do Duke.
E o senhor nunca reagiu?” – a pergunta tinha a intenção de espicaçar o amor-próprio do maestro.
Eu reagia, sim. Cada vez que eu me sentia discriminado eu me lembrava da minha mãe e dos seus conselhos. Cada vez que eu me sentia indignado, eu me sentava ao piano e compunha um blues, ou uma música cheia de blues. Com isso, já compus mais de duas mil diferentes melodias...”.
As respostas imprevisíveis de Duke sempre colocavam Dwight numa situação defensiva. “É melhor deixar de lado as suas impressões pessoais” – pensou o repórter – “e procurar saber um pouco mais a respeito da sua música”.
O senhor considera a sua música dissonante?”.
Minha música não é dissonante” – respondeu Ellington – “dissonante é o estilo de vida americano, onde os negros são colocados à margem do sistema, embora, afinal, façam parte do sistema. Isto é ser dissonante. Minha música é assertiva, e tem a intenção de derrubar barreiras para unir as pessoas”.
Dwight remexeu-se em sua cadeira, dando a entender que estava ansioso para fazer uma pergunta. Sorriu, e questionou, abruptamente:
Qual a maior frustração da sua carreira?”.
O repórter era um irlandês durão, e não temia a fama de “durão” que vinha do outro lado.
Ellington também sorriu, e pela primeira vez encarou o jornalista. Depois alargou o seu sorriso, que por pouco não resultou numa gostosa gargalhada.
Você nem imagina!”. Aguardou alguns instantes para criar um clima e arrematou – “A minha grande frustração foi Louis Armstrong!”.
Como assim?” – espantou-se o repórter.
Armstrong foi o maior músico que eu conheci. Se é que o jazz possui um Bach, Armstrong é o Bach do jazz. É também o Shakespeare e o Dante. E o Michelangelo. Ele é tudo o que o jazz tem de notável. Juntos, poderíamos ter feito muita coisa boa, mas os nossos caminhos nunca se cruzaram devidamente”.
Ellington se levantou e começou a caminhar lentamente pelo estúdio. Enquanto caminhava, indo e vindo da parede para o piano e de volta para a parede, ele exibia um semblante iluminado por boas lembranças.
Lá pelos 30, não me lembro exatamente o ano, Louie realizou um único concerto com a minha orquestra. Isto aconteceu em Chicago, e o encontro foi arranjado pelo meu empresário e parceiro na época, Irving Mills”.
Dwight Spencer olhava fascinado. Estava conseguindo tirar o maestro da sua casca, e seguramente ouvindo uma história jamais contada anteriormente.
O encontro foi divino. Tudo feito meio de improviso, você entende, e Armstrong tocou uma parte que havia sido escrita para Rex Stewart, um dos trompetistas da minha orquestra, e deixou todos literalmente encantados”.
Duke sentou-se ao piano novamente e tentou repetir o “chorus”, ainda um pouco inflamado com a lembrança. Depois arrefeceu.
É uma pena que tenha durado tão pouco...” – completou ele, falando para si mesmo, de volta ao passado. Então silenciou e ficou pensativo.
Talvez eu pudesse ter elevado a carreira de Louie para alturas inimagináveis, se é que dá para imaginar que ele pudesse ter ido ainda mais alto...”
De fato, entre outras coisas, Duke Ellington escreveu excelentes peças especialmente para o trompete, como “Trumpet In Spades” ou “Boy Meets Horn” – feitas para Rex Stewart – ou “Concerto For Cootie” (que mais tarde recebeu um novo arranjo e o nome de “Do Nothing Til’ You Hear From Me”) ou “Echoes Of Harlem” – todas compostas para Cootie Williams.
Tenho certeza que se eu escrevesse algumas músicas para Armstrong, ele teria feito concertos maravilhosos ao lado da minha orquestra. As nossas apresentações seriam sem dúvida algo para entrar na história. Mas devido aos contratos que ele mantinha com empresários, editores e gravadoras, Louie infelizmente estava mais envolvido com o show business e com a gravação de músicas menos representativas, como “Shoe-Shine Boy”, “The Skeleton In The Closet” ou “Jeepers Creepers”, do que em entrar para a história”.
Ellington olhou novamente para o alto, como se o teto branco e sem vida pudesse ajudá-lo a evocar as suas lembranças.
Em 1945, a revista Esquire deu a mim e a ele o prêmio de melhor do ano nas nossas respectivas categorias e, durante a festa de premiação, a gente teve a oportunidade de tocar num breve encontro com outros músicos também premiados, numa orquestra formada às pressas que eles têm o hábito de chamar de “All Stars”. Infelizmente, parece não haver nenhum registro deste evento”.
Quando Dwight Spencer saiu do estúdio já era noite alta.
Ele havia feito a mais estranha entrevista da sua vida, pois as suas perguntas não raro tinham ficado no ar, e ele não tinha conseguido anotar quase nada das declarações do maestro, embora mantivesse o espírito da conversa vivo e aceso dentro da sua cabeça.
Com certeza, o resultado do “tête-a-tête” não se transformaria naquela reportagem chavão tipo “pergunta e resposta”, sonho de consumo das revistas e jornais para extraírem e exibirem as vísceras das personalidades entrevistadas.
Mas, com certeza, a impressão deixada por Ellington e seus comentários inesperados dariam a Dwight a oportunidade de escrever não uma reportagem, mas uma crônica, ou até um livro, que colocaria a biografia num segundo plano e se importaria em realçar realmente o âmago do entrevistado.


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